Amiga do tempo e irmã do sono, a Morte está imersa na vida.
(GOLDBERG e D’AMBROSIO, 1992, p. 11)
O ritual que acompanhava a morte é seguido à risca para que o defunto tenha “uma boa morte”. Uma “boa morte”, no ritual fúnebre, era precedida pelo leito onde agonizava o corpo prestes a deixar a vida: Esther Pedreira de Mello, por exemplo, a personagem que investigo para minha tese de doutoramento, foi internada em uma Casa de Saúde tida pela sociedade como de alto prestígio[1], após uma operação para extirpar o “mal” que a afligia há tempos. A não divulgação da doença, poeticamente denominada “mal”, pertencia à norma da boa etiqueta de não nomear certas doenças. A aura romântica que envolvia a doença chamou, durante muito tempo, a tuberculose de “mal do século”, o câncer, era doença sequer nominada. Na verdade, dentro do espetáculo do enterramento, esta é questão insignificante para compreensão da vida, enquanto por si só, este detalhe revele representação social da causa mortis[2].
Normalmente se morre deitada, “jazendo no
leito, enferma” (ARIÈS, 2003, p.34), cumprindo o ritual que permitia que, de
“costas, mantenha os olhos para o céu” (ibid, p.31), sendo católica,
provavelmente a cumprir o ritual de lamento da vida, depois o pedido de perdão dos pecados e a
recomendação, a Deus, de seus sobreviventes, depois, o pensamento em Deus através
da culpa e das preces.
Nenhum item deste ritual é privado,
embora a morte seja solitária. O público, segundo este autor, é composto da
família, do sacerdote, que possivelmente ofertou ao enfermo o último sacramento,
dos amigos mais próximos e dos profissionais do hospital que ali
estavam para determinar em que hora foi feita a passagem - a morte é um ritual de passagem - de uma para outra vida.
O
tema da morte é de difícil tratamento por envolver o “eu” mais profundo de cada
ser, ou como explica Ariès (2003), depois de quinze anos pesquisando o tema, a
atitude de
estar com a morte nas culturas cristãs
ocidentais [...] que recuava quando acreditava tocar-lhe os limites [...] e era
repelido cada vez para mais longe [...] em relação ao meu ponto de partida
(p.14)
Goldberg e
D’Ambrosio (1992) ao pesquisarem o tema da morte usam, muitas vezes, metáforas[1],
ou mitos, como o de Gilgamesh [2],
para lembrar que, embora desde a Antiguidade este seja um tema recorrente entre
filósofos e pensadores, é um aspecto da vida para o qual não temos, enquanto
seres humanos, como ter um conhecimento prévio sobre ela de modo a, cognoscitivamente, nos prepararmos para este evento.
Rodrigues
(1995), voltando-se para os rituais mortuários na cidade do Rio de Janeiro,
explica-os como uma cena onde os personagens do “drama fúnebre se distribuem
através do espaço e do papel que representaram”, numa “interação do teatro da
vida com o teatro da morte”(p.14).
A cidade do Rio de Janeiro foi [1],
assolada pela peste bubônica, pela varíola, e outras doenças, então, providências
médico-profiláticas foram tomadas não só com a vacinação, mas com a mudança do costume do
enterramento que era feito nas igrejas[2],
a elas impregnando um odor fétido, corresponde à decomposição biológica dos
corpos ali enterrados[3].
Os cemitérios da cidade foram criados de acordo com o Decreto
Imperial nº 482, de 16 de outubro de 1851, e eram dois: o São João Batista (cujo
terreno foi comprado a Francisco da Cruz Maia e fazia parte da Chácara Berquó)
e o Cemitério de São Francisco Xavier (originalmente fronteiro à praia de
São Cristóvão, desaparecida em razão de aterros diversos, onde era o antigo Campo da
Misericórdia, usado desde 1839 para enterramentos de escravos; quando da
transformação deste em cemitério público, foram comprados diversos terrenos do
entorno do aterro).
Essas novas medidas de enterramento, de cunho profilático, não só afetaram o convívio do habitante do Rio de
Janeiro a partir desta grande epidemia, como marca uma nova era “civilizadora” e
progressista na relação social. A medicina, por exemplo, responsável pelas explicações do enterramento nos cemitérios, fora das igrejas, passou a ter visibilidade e “a ser
encarada como apoio científico indispensável ao exercício do poder do Estado”(RODRIGUES,
1995, p.56), deslocando-a da cura de doenças para a proteção à saúde.
Faziam parte do ritual, ainda, o uso da mortalha, e havia de vários tipos, a contratação de carpideiras que "choravam o morto", a fotografia do defunto em seu caixão, ou sentado, especialmente se fossem crianças. Havia ainda a missa, onde o defunto estava presente, o que fazia parte das "preparações" para a "boa morte". O cortejo, que depois levava o defunto à nova morada, tinha sempre, e ainda tem, uma hierarquia, indo à frente a família, a seguir os parentes e por último amigos e representações da vida do homenageado. As coroas deviam especificar condolências e quem as mandara, o que ainda hoje se conserva.
A imprensa,
que se expandia, devido às novas máquinas que chegavam, aos linotipos que se
modernizavam e a empregados mais qualificados nas gráficas, levava aos quatro ventos
as notícias, espalhando-as até a quem não era alfabetizado, o que constituía, então, grande parte da população. Estes muitos jornais que surgiram no final do
oitocentos[4],
de breve existência, permitiam-se opinar, ensinar e publicizar informes, e nem
sempre eram confiáveis, porque aludiam ao “ouvir dizer”, mas democratizavam a notícia que o Estado desejava propagar, vão, aos poucos, sendo substituídos por projetos gráficos que atraiam o olhar e atingiam nichos específicos da população, como
as mulheres, transmitindo-lhes, através de uma cumplicidade amiga, as
representações culturais que ainda dominavam, e as que deveriam dominar, a sociedade.
Após a
instauração da república, e com um projeto civilizatório para realizar aos
moldes de Paris, as medidas normativas profiláticas permanecem, mas são
revigoradas por outras, de embelezamento e alargamento de ruas e vielas,
aterramento de mangues e derrubada de morros que higienizaram e modificaram a
vida e a cultura urbana no Rio de Janeiro, inclusive sua relação com a morte.
Referências
ARIÈS,
Philipe. História da Morte no Ocidente.
Trad. Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
BIBLIOTECA
NACIONAL. Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro –
1924, vol I, p. 1297
HORÁCIO. Carpe diem in Odes. Disponível em
http://palavrastodaspalavras.wordpress.com/2009/07/16/carpe-diem-in-odes-1-11-8-do-poeta-romano-horacio-65-8ac/
Acesso em 01/11/2012
GOLDBERG,
Jacob Pinheiro e D’AMBROSIO, Oscar. A
clave da Morte. São Paulo: Maltese, 1992
NAVA, Pedro - Balão Cativo/ memórias 2 - Rio de
Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 2ª ed., 1974
REGO, Jose Pereira.
História e descrição da febre amarela epidémica que grassou no Rio de Janeiro
em 1850. Rio de Janeiro: Typ. Francisco de Paula Brito, 185
SANTOS,
Antônio Alves Ferreira dos - A
Archidiocese de S. Sebastião do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typographia Leuzinger, 1914
CÂMARA,
Cláudia Milena Coutinho da. Os agentes
funerários e a morte: o cuidado presente diante da vida ausente.
Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Unversidade
Federal do Rio Grande do Norte, 2011.
[1]
Houve uma grande epidemia na cidade do Rio de Janeiro, em 1849, que modificou normas profiláticas e sociais
até então utilizadas no Rio de Janeiro.
[2]
O sepultamento fora das Igrejas só foi proibido a partir de 1850 devido ao
grande surto de febre amarela de 1849, face a medidas profiláticas (RODRIGUES,
1995,p. 22). Segundo as estimativas de Pereira Rego (1851, p.II), em obra sobre
a epidemia de 1850, dos 166.000 habitantes, a doença atingiu 90.658, causando
4.160 mortos.
[3]
O sepultamento nas igrejas é prática medieval, Na Antiguidade os mortos eram
sepultados fora dos limites das cidades, ao longo das estradas. (ARIÈS, 2003,
p.37).
[4]
“A partir de 1º de agosto de 1845, encontramos desafiando os poderosos O Socialista da Província do Rio de Janeiro,
em Niterói. Saía a cada três dias. Sob a égide das ideias do francês Charles
Fourier, tinha entre os fundadores e colaboradores o seu discípulo, Dr. Mure,
médico homeopata, idealizador da Colônia do Saí, em Santa Catarina, no ano de
1841.” Ver RODRIGUES, Edgar, Pequena
história da Imprensa Social no Brasil. Florianópolis; Editora Insular, 1997 e
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro:Mauad,
1999.
[1]
“Carpe diem quam minimum credula póstero/ Tu ne quaesieris, scire nefas, quem
mihi, quem tibi/ finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios/ temptaris numeros.
ut melius, quidquid erit, pati./ seu pluris iemes seu tribuit Iuppiter
ultimam,/ quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare / Tyrrhenum: sapias,
vina/ liques et spatio brevi/ spem
longam reseces. dum loquimur, fugerit invida/ aetas: carpe diem quam minimum
credula postero.(HORÁCIO, Carpe diem, 1, 11.8)” Ver as Odes,Horácio (65 a.C- 8d.
C).
[2]
Épico de Gilgamesh é um antigo poema
épico da Mesopotâmia, uma das primeiras obras conhecidas da literatura mundial.
Acredita-se que sua origem esteja em lendas e poemas sumérios sobre o mitológico herói
Gilgamesh, que foram reunidos e compilados no século VII a.C. pelo rei
Assurbanipal. A parte final do épico é centrada na reação de transtorno de
Gilgamesh à morte de Enkidu, que acaba por tomar a forma de uma busca do herói
pela imortalidade. Gilgamesh faz, então, uma longa e perigosa jornada para
descobrir o segredo da vida eterna e vem a consultar Utnapishtim, o herói
imortal do dilúvio. Depois de ouvir herói, o sábio declaraque a vida procurada por ele nunca será encontrada
porque os deuses reservaram ao homem a morte, ainda que tenham mantido a
vida do homem na posse dos deuses. Ver Gilgamesh,
trad. de Pedro Tamen. São Paulo: Ars Poetica, 1992
[1] Em
anúncio propagandístico da instituição
Casa de Saude Crissiuma, no Almanak : “de 1ª ordem, sob a direção do Dr.
Crissiuma Filho” (1924, p.1297)
[2]
Dependendo do status do morto a causa
de sua morte pode, ou não ser publicizada
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