Texto de João do Rio, ou João
Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, escritor, boêmio,
homossexual, intelectual, cronista do submundo da cidade do Rio de Janeiro.
Este personagem me encanta. As palavras, as trata como faz com a vida, com
languidez, como um passante despreocupado, um flaneur que as colhe em cachos e as serve, aos seus leitores, como
iguarias finas que reproduzem, como um quadro, as pinceladas do artista. Pelo
meu recorte de pesquisa, final do oitocentos e início do novecentos, sempre uso
seu olhar para me descrever o Rio de Janeiro. Hoje, quinta-feira, vou deixá-los
com ele, com meu mestre cronista, filho de Alfredo Coelho Barreto, professor de
Matemática da Escola Normal e de D. Florência dos Santos Barreto. Nasceu na Rua
do Hospício, mas de louco nada tinha, assim como a rua.
“A rua nasce,
como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa do seu
calçamento. Cada casa que se ergue é feita do esforço exaustivo de muitos
seres, e haveis de ter visto pedreiros e canteiros, ao erguer as pedras para as
frontarias, cantarem, cobertos de suor, uma melopéia tão triste que pelo ar
parece um arquejante soluço. A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e
por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras
humanas. A rua criou todas as blagues todos os lugares-comuns. Foi ela que fez
a majestade dos rifões, dos brocardos, dos anexins, e foi também ela que
batizou o imortal Calino. Sem o consentimento da rua não passam os sábios, e os
charlatães, que a lisonjeiam lhe resumem a banalidade, são da primeira ocasião
desfeitos e soprados como bolas de sabão. A rua é a eterna imagem da
ingenuidade. Comete crimes, desvaria à noite, treme com a febre dos delírios,
para
ela como para as crianças a
aurora é sempre formosa, para ela não há o despertar triste, quando o sol
desponta e ela abre os olhos esquecida das próprias ações, é, no encanto da
vida renovada, no chilrear do passaredo, no embalo nostálgico dos pregões — tão
modesta, tão lavada, tão risonha, que parece papaguear com o céu e com os
anjos...
A rua faz as
celebridades e as revoltas, a rua criou um tipo universal, tipo que vive em
cada aspecto urbano, em cada detalhe, em cada praça, tipo diabólico que tem dos
gnomos e dos silfos das florestas, tipo proteiforme, feito de risos e de
lágrimas, de patifarias e de crimes irresponsáveis, de abandono e de inédita
filosofia, tipo esquisito e ambíguo com saltos de felino e risos de navalha, o
prodígio de uma criança mais sabida e cética que os velhos de setenta invernos,
mas cuja ingenuidade é perpétua, voz que dá o apelido fatal aos potentados e
nunca teve preocupações, criatura que pede como se fosse natural pedir, aclama
sem interesse, e pode rir, francamente, depois de ter conhecido todos os males
da cidade, poeira d’ouro que se faz lama e torna a ser poeira — a rua criou o
garoto!
Essas
qualidades nós as conhecemos vagamente. Para compreender a psicologia da rua
não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do
luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os
nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que
chamamos flaneur e praticar o mais interessante dos esportes — a arte de
flanar. É fatigante o exercício?
As observaçõs foram guardadas na placa
sensível do cérebro; as frases, os ditos, as cenas vibram-lhe no cortical.
Quando o flâneur deduz,
ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para seu uso exclusivo, ei-lo a psicologar,
ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas. E é então que
haveis de pasmar da futilidade do mundo e da inconcebível futilidade dos
pedestres da poesia de observação...
Eu fui um pouco esse tipo complexo, e,
talvez por isso, cada rua é para mim um ser vivo e imóvel. Balzac dizia que as
ruas de Paris nos dão impressões humanas.São assim as ruas de todas as cidades,
com vida e destinos iguais aos do homem.[...]
Oh! sim, as ruas têm alma! Há ruas
honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas,
depravadas, puras, infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam para
contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas,
spleenéticas, snobs, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes, que
ficam sem pinga de sangue...
Vede a Rua do Ouvidor. É a fanfarronada em
pessoa, exagerando, mentindo, tomando parte em tudo, mas desertando, correndo
os taipais das montras1 à mais leve sombra de perigo. Esse beco inferno de
pose, de vaidade, de inveja, tem a especialidade da bravata. E fatalmente oposicionista,
criou o boato, o “diz-se...“ aterrador e o “fecha-fecha” prudente. Começou por chamar-se
Desvio do Mar. Por ela continua a passar para todos os desvios muita gente boa.
No tempo em que os seus melhores prédios se alugavam modestamente por dez mil
réis, era a Rua do Gadelha. Podia ser ainda hoje a Rua dos Gadelhas, atendendo
ao número prodigioso de poetas nefelibatas que a infestam de cabelos e de
versos. Um dia resolveu chamar-se do Ouvidor sem que o senado da câmara fosse
ouvido. Chamou-se como calunia, e elogia, como insulta e aplaude, porque era
preciso denominar o lugar em que todos falam de lugar do que ouve; e parece que
cada nome usado foi como a antecipação moral de um dos aspectos atuais dessa irresponsável
artéria da futilidade.
A Rua da Misericórdia, ao contrário, com as
suas hospedarias lôbregas, a miséria, a desgraça das casas velhas e a cair, os
corredores bafientos, é perpetuamente lamentável. Foi a primeira rua do Rio.
Dela partimos todos nós, nela passaram os vice-reis malandros, os gananciosos,
os escravos nus, os senhores em redes; nela vicejou a imundície, nela
desabotoou a flor da influência jesuítica. Índios batidos, negros presos a
ferros, domínio ignorante e bestial, o primeiro balbucio da cidade foi um grito
de misericórdia, foi um estertor, um ai! Tremendo atirado aos céus. Dela brotou
a cidade no antigo esplendor do Largo do Paço, dela decorreram, como de um
corpo que sangra, os becos humildes e os coalhos de sangue, que são as praças, ribeirinhas
do mar. Mas, soluço de espancado, primeiro esforço de uma porção de infelizes,
ela continuou pelos séculos afora sempre lamentável, e tão augustiosa e franca
e verdadeira na sua dor que os patriotas lisonjeiros e os governos, ninguém,
ninguém se lembrou nunca de lhe tirar das esquinas aquela muda prece, aquele
grito de mendiga velha: — Misericórdia!
Há ruas que mudam de lugar, cortam morros,
vão acabar em certos pontos que ninguém dantes imaginara — a Rua dos Ourives;
há ruas que, pouco honestas no passado, acabaram tomando vergonha — a da
Quitanda. Essa tinha mesmo a mania de mudar de nome. Chamou-se do Açougue
Velho, do lnácio Castanheira, do Sucusarrará, do Tomé da Silva, que sei eu? Até
mesmo Canto do Tabaqueiro. Acabou Quitanda do Marisco, mas, como certos
indivíduos que organizam o nome conforme a posição que ocupam, cortou o marisco
e ficou só Quitanda. Há ruas, guardas tradicionais da fidalguia, que deslizam
como matronas conservadoras — a das Laranjeiras; há ruas lúgubres, por onde
passais com um arrepio, sentindo o perigo da morte — o Largo do Moura por
exemplo. Foi sempre assim. Lá existiu o Necrotério e antes do Necrotério lá
se erguia a Forca. Antes da autópsia, o
enforcamento. O velho largo macabro, com a alma de Tropmann e de Jack, depois
de matar, avaramente guardou anos e anos, para escalpelá-los, para chamá-los,
para gozá-los, todos os corpos dos desgraçados que se suicidam ou morrem assassinados.
Tresanda a crime, assusta. A Prainha também. Mesmo hoje, aberta, alargada com Vitrine.
Prédios novos e a trepidação contínua do comércio, há de vos dar uma impressão
de vago horror. À noite são mais densas as sombras, as luzes mais vermelhas, as
figuras maiores. Por que terá essa rua um aspecto assim? Oh! Porque foi sempre
má, porque foi sempre ali o Aljube, ali padeceram os negros dos três primeiros
trapiches do sal, porque também ali a forca espalhou a morte!
Há entretanto outras ruas, que nascem
íntimas, familiares, incapazes de dar um passo sem que todas as vizinhas não
saibam. As ruas de Santa Teresa estão nestas condições. Um cavalheiro salta no
Curvelo, vai a pé até o França, e quando volta já todas as ruas perguntam que deseja
ele, se as suas tenções são puras e outras impertinências íntimas. Em geral,
procura-se o mistério da montanha para esconder um passeio mais ou menos
amoroso. As ruas de Santa Teresa, é descobrir o par e é deitar a rir
proclamando aos quatro ventos o acontecimento.
Uma das ruas, mesmo, mais leviana e
tagarela do que as outras, resolveu chamar-se logo Rua do Amor, e a Rua do Amor
lá está na freguesia de S. José. Será exatamente um lugar escolhido pelo Amor,
deus decadente? Talvez não. Há também na freguesia do Engenho Velho uma rua intitulada
Feliz Lembrança e parece que não a teve, segundo a opinião respeitável da
poesia anônima:
Na Rua Feliz Lembrança
Eu escapei por um triz
De ser mandado à tábua.
Ai! que lembrança infeliz
Tal nome pôr nesta rua!
Há
ruas que têm as blandícias de Goriot e de Shylock para vos emprestar a juro,
para esconder quem pede e paga o explorador com ar humilde. Não vos lembrais da
Rua do Sacramento, da rua dos penhores? Uma aragem fina e suave encantava
sempre o ar. Defronte à igreja, casas velhas guardavam pessoas tradicionais. No
Tesouro, por entre as grades de ferro, uma ou outra cara desocupada. E era ali
que se empenhavam as jóias, que pobres entes angustiados iam levar os
derradeiros valores com a alma estrangulada de soluços; era ali que refluíam
todas as paixões e todas as tristezas, cujo lenitivo dependesse de dinheiro...
Há ruas oradoras, ruas de meeting
— o Largo do Capim que assim foi sempre, o Largo de S.
Francisco; ruas de calma alegria burguesa, que parecem sorrir com honestidade —
a Rua de Haddock Lobo; ruas em que não se arrisca a gente sem volver os olhos
para trás a ver se nos vêem —a Travessa da Barreira; ruas melancólicas, da
tristeza dos poetas; ruas de prazer suspeito próximo do centro urbano e como
que dele muito afastadas; ruas de paixão romântica, que pedem virgens loiras e
luar.
Qual de vós já passou a noite em claro
ouvindo o segredo de cada rua? Qual de vós já sentiu o mistério, o sono, o
vício, as idéias de cada bairro?
A alma da rua só é inteiramente sensível a
horas tardias. Há trechos em que a gente passa como se fosse empurrada,
perseguida, corrida — são as ruas em que os passos reboam, repercutem, parecem
crescer, clamam, ecoam e, em breve, são outros tantos passos ao nosso encalço.
Outras que se envolvem no mistério logo que as sombras descem — o Largo de
Paço.
Foi esse largo o primeiro esplendor da
cidade. Por ali passaram, na pompa dos pálios e dos baldaquins d’ouro e
púrpura, as procissões do Enterro, do Triunfo, do Senhor dos Passos; por ali, ao
lado da Praia do Peixe, simples vegetação de palhoças, o comércio agitava as
suas primeiras elegâncias e as suas ambições mais fortes. O largo, apesar das reformas,
parece guardar a tradição de dormir cedo. À noite, nada o reanima, nada o
levanta. Uma grande revolução morre no seu bojo como um suspiro; a luz leva a
lutar com a treva; os próprios revérberos parece dormitarem, e as sombras que
por ali deslizam são trapos da existência almejando o fim próximo, ladrões sem
pousada, imigrantes esfaimados... Deixai esse largo, ide às ruelas da Misericórdia,
trechos da cidade que lembram o Amsterdão sombrio de Rembrandt. Há homens em
esteiras, dormindo na rua como se estivessem em casa. Não nos admiremos. Somos
reflexos.
O Beco da Música ou o Beco da Fidalga
reproduzem a alma das ruas de Nápoles, de Florença, das ruas de Portugal, das
ruas da África, e até, se acreditarmos na fantasia de Heródoto, das ruas do
antigo Egito. E por quê? Porque são ruas da proximidade do mar, ruas viajadas,
com a visão de outros horizontes. Abri uma dessas pocilgas que são a parte do
seu organismo. Haveis de ver chineses bêbados de ópio, marinheiros embrutecidos
pelo álcool, feiticeiras ululando canções sinistras, toda a estranha vida dos
portos de mar. E esses becos, essas betesgas têm a perfídia dos oceanos, a
miséria das imigrações, e o vício, o grande vício do mar e das colônias...
Se as ruas são entes vivos, as ruas pensam,
têm idéias, filosofia e religião. Há ruas inteiramente católicas, ruas
protestantes, ruas livres-pensadoras e até ruas sem religião. Trafalgar
Square, dizia o mestre humorista Jerome, não tem uma opinião teológica
definitiva. O mesmo se pode dizer da Praça da Concórdia de Paris ou da Praça
Tiradentes. Há criatura mais sem miolos que o Largo do Rocio? Devia ser
respeitável e austero. Lá, Pedro I, trepado num belo cavalo e com um belo
gesto, mostra aos povos a carta da independência, fingindo dar um grito que
nunca deu. Pois bem: não há sujeito mais pândego e menos sério do que o velho
ex- Largo do Rocio. Os seus sentimentos religiosos oscilam entre a depravação e
a roleta.
Felizmente, outras redimem a sociedade de
pedra e cal, pelo seu culto e o seu fervor. A Rua Benjamin Constant está neste
caso, é entre nós um tremendo exemplo de confusão religiosa. Solene, grave,
guarda três templos, e parece dizer com circunspecção e o ar compenetrado de certos
senhores de todos nós conhecidos:
— Faço as obras do Coração de Jesus, creio
em Deus, nas orações, nos bentinhos e só
não sou positivista porque é tarde para
mudar de crença. Mas respeito muito e admiro Teixeira Mendes...
Nós, os homens nervosos, temos de quando em
vez alucinações parciais da pele, dores fulgurantes, a sensação de um contacto
que não existe, a certeza de que chamam por nós. As ruas têm os rolos, as casas
mal assombradas, e há até ruas possessas, com o diabo no corpo. Em S. Luís do
Maranhão há uma rua sonâmbula muito menos cacete que a ópera célebre do mesmo nome.
Essa rua é a Rua de Santa Ana, a lady Macbeth
da topografia. Deu-se lá um crime horrível. Às dez horas, a rua cai em estado
sonambúlico e é só gritos, clamores: sangue! sangue!
Ruas assim ainda mostram o que pensam. Talvez
as outras tenham maiores delírios, mas são como os homens normais — guardam
dentro do cérebro todos os pensamentos extravagantes. Quem se atreveria a
resumir o que num minuto pensa de mal, de inconfessável, o mais honesto
cidadão? Entre as ruas existem também as falsas, as hipócritas, com a alma de Tartufo
e de Iago. Por isso os grandes mágicos do interior da África Central, que dos
sertões adustos levavam às cidades inglesas do litoral sacos d’ouro em pó e
grandes macacos tremendos, têm uma cantiga estranha que vale por uma sentença
breve de Catão:
O
di ti a uê, chê
F’u,
a uá ny
Odé, odá, bi ejô
Sa
lo dê
Sentença que em eubá,
o esperanto das hordas selvagens, quer dizer apenas isto: rua
foi feita para ajuntamentos. Rua é como cobra. Tem veneno. Foge da rua!
Mas o importante, o grave, é ser a rua a
causa fundamental da diversidade dos tipos urbanos. Não sei se lestes um
curioso livro de E. Demolins, Comment la route crée le type social.
É uma revolução no ensino da Geografia. “A causa primeira e
decisiva da diversidade das raças, diz ele, é a estrada, o caminho que os
homens seguirem. Foi a estrada que criou a raça e o tipo social. Os grandes
caminhos do globo foram, de qualquer forma, os alambiques poderosos que
transformaram os povos. Os caminhos das grandes estepes asiáticas, das tundras
siberianas, das savanas da América ou das florestas africanas insensivelmente e
fatalmente criaram o tipo tártaro-mongol, o lapão-esquimó, o pele-vermelha, o
índio, o negro”.
A rua é a civilização da estrada. Onde
morre o grande caminho começa a rua, e, por isso, ela está para a grande cidade
como a estrada está para o mundo. Em embrião, é o princípio, a causa dos
pequenos agrupamentos de uma raça idêntica. Daí, em muitos sítios da terra as
aldeias terem o único nome de rua. Quando aumentam e crescem depois, ou pela
devoção da maioria dos habitantes ou por uma impressão de local, acrescentam ao
substantivo rua o complemento que das outras as deve diferençar. Em Portugal
esse fato é comum. Há uma aldeia de 700 habitantes no Minho que se chama
modestamente Rua de S. Jorge, uma outra no Douro que é a Rua da Lapela, e
existem até uma Rua de Cima e uma Rua de Baixo. [...]”
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