Containers que abrigam artefatos achados no Cais do Valongo |
Escola Frienderech |
Teatro Carlos Gomes interditado |
Antigo Museu do índio |
Não parece, mas vivemos em uma
cidade, a única no mundo, que foi considerada pela UNESCO “Patrimônio Cultural
da Humanidade”.
Que é patrimônio?[1]
Patrimônio.
Esta bela e antiga palavra estava, na origem, ligada às estruturas familiares,
econômicas e jurídicas de uma sociedade estável, enraizada no espaço e no
tempo. Requalificada por diversos adjetivos (genético, natural, histórico,
etc.) que fizeram dela um conceito "nômade", ela segue hoje uma
trajetória diferente e retumbante. Patrimônio histórico. A expressão designa um
bem destinado ao usufruto de uma comunidade que se ampliou a dimensões
planetárias, constituído pela acumulação contínua de uma diversidade de objetos
que se congregam por seu passado comum: obras e obras-primas das belas-artes e
das artes aplicadas, trabalhos e produtos de todos os saberes e savoir-faire dos seres humanos. Em nossa
sociedade errante, constantemente transformada pela mobilidade e ubiquidade de
seu presente, "patrimônio histórico" tornou-se uma das
palavras-chaves da tribo midiática. Ela remete a uma instituição e a uma
mentalidade. A transferência semântica sofrida pela palavra revela a opacidade
da coisa. O patrimônio histórico e as condutas a ele associadas encontram-se
presos em estratos de significados cujas ambiguidades e contradições articulam
e desarticulam dois mundos e duas visões de mundo. O culto que se rende hoje ao
patrimônio histórico deve merecer de nós mais que a simples aprovação. Ele
requer um questionamento porque se constitui num elemento revelador,
negligenciado mas brilhante, de uma condição da sociedade e das questões que
ela encerra. (CHOAY, 2000, p. 11-12)
Carioca e
historiadora, gosto de ver preservados os monumentos desta minha cidade que
tantas transformações sofreu desde 1565. Mudança de lugar (do Morro do Castelo
para a planície, do centro para os bairros, etc.), alterações topográficas
(tantas, dentre elas: desmonte de morros, aterramentos de mangues, desvios
hidrográficos, etc.), alterações de vias (alargamentos de vielas estreitas,
derrubada de cortiços e habitações populares, criação de boulevares) enfim. Alterações que foram mudando a cidade. Romero
(2004) ao tratar da história das cidades latino-americanas apresenta-as como
“lugar das mudanças”, explicando que elas podem dar a perceber interpretações
historiográficas para iluminar o fenômeno das ideias nelas produzidas, fazendo
peculiar o estudo de cada estrutura urbana porque remete às ideias ali
construídas e sedimentadas[2].
Ao usar a
expressão “não parece” no início deste meu triste desabafo, levo em conta os
recentes fatos, explorados à exaustação pela mídia, da destruição do antigo
Museu do Índio (onde nosso primeiro morador, o índio, teve que defender um
espaço construído pelo homem branco e “civilizado” no século XIX); das peças
arqueológicas encontradas no Cais do Valongo e depositadas em um container
(naturalmente esperando que Deus olhe pelos artefatos que o homem do passado
produziu); da escola Friedenreich (onde os professores, alunos e povo do Rio de
Janeiro tiveram que explicar ao Prefeito da cidade, que se diz carioca, que a
arquitetura escolar é patrimônio arquitetônico[3]).
Ao mesmo
tempo, descobre-se, por conta da tragédia de Santa Maria (RS), que comoveu o
país, ceifando vidas de tantos jovens, que
a comoção serviu para mostrar ao Prefeito e ao Governador que um número
imenso de “lugares de cultura”, e me perdoem pela apropriação do termo de
Pierre Nora[4],teatros,
centros de exposições, bibliotecas foram INTERDITADOS porque não ofereciam
segurança ao usuário e/ou não estavam com sua documentação correta ou não
teriam sido avaliados pelo Corpo de Bombeiros. E me pergunto, sem conseguir
responder-me: mas só agora descobriram isso? E aquele restaurante que explodiu
na Praça Tiradentes, também ceifando vidas, que ninguém sabia (os bombeiros
então?!) que tinha botijões de gás, em lugar indevido? Se o caso não fosse tão
sério com acontecimentos tão trágicos, diria que estão querendo brincar com o
povo que mora no Rio de Janeiro.
Ao ouvir
nosso governador, filho de uma professora do Instituto de Educação, com quem já
conversei, responsável pelo Museu da República e de um pesquisador como Sérgio
Cabral, reconhecidamente um culto e sério, da cultura dita popular[5],
dizer para milhões de telespectadores “que os índios não estão ali desde 1876,
ou de 1786, ou...” Que bobagem!!! Desde quando governador patrimônio se mede
por tempo de ocupação? Fosse assim, eu atravessava a baía de Guanabara e
mandava destruir aquele maravilhoso museu que Niemeyer projetou e que integra
acervo inestimável de nossa cultura arquitetônica. Ora Sérgio!!!
Eu não sou “gente
importante”, não desejo 15 minutos de fama em mídia. Sou uma pesquisadora
carioca que penso e digo o que penso. Mas peço que os administradores, Sérgio e
Eduardo, levem em conta o que esta cidade representa e sempre representou. Levamos
anos para sair do ostracismo a que a ditadura militar nos relegou. Saímos. O
país inteiro pegou “carona”: seja nos royalties do petróleo, seja nos eventos
que sediaremos (só o último jogo da Copa será realizado no Maracanã). Mas, não
me lembro de, apesar da ditadura, ver algum estado da combalida federação
brasileira ter lamentado o ocaso de uma cidade que foi sede da monarquia, sede
da república, estado, ter sido incorporada a outro estado. Agora, na “mão
grande” (não ligue, não, é uma expressão bem carioca da cultura popular, pergunte
a quem entende) vão levando tudo, e
nossos administradores aceitam, sorrindo. Nós, os habitantes do Rio de Janeiro,
não aceitamos.
Tudo isso é
para dizer que, se a escola não vai abaixo (não ressuscite Pereira Passos,
Eduardo, que vai uma distância grande e os objetivos dele não eram tão “nobres”
assim como você pensa[6])
deva-o aos professores, alunos e ao povo do Rio de Janeiro. Se o antigo Museu
do Índio não vai abaixo, deva-o aos índios que desde 1996 ocupam o espaço que o
Estado descartou (olha só, Sérgio, você que conhece Paris [eu não tive esta
sorte, sou professora do Estado e Município por concurso público, aposentada]
deveria saber que lá, em Paris, o patrimônio é respeitado).
E o que você
faz, ou tenta, sai querendo derrubar qualquer coisa que A ou B não consideram
patrimônio!!! Em Paris, até o que restou das obras de Haussmann – o mentor
intelectual das reformas no Rio do início do século – estão lá, como
patrimônio.
Mas o povo
não se mexeu quanto aos artefatos do Cais de Valongo, Eduardo. Vai jogar no
lixo? Pelo menos escolha o lixo de um pesquisador, um antropólogo, um arqueólogo,
um historiador... ele vai valorizar, porque vai pesquisar mais um pedaço da
história desta cidade linda.
E quanto aos
nossos “lugares de cultura”, Eduardo e Sérgio, é simples: ao invés de colocarem
nos postos públicos pessoas amigas despreparadas que nem trabalham nem
gerenciam, como se fazia nos tempos coloniais no Rio de Janeiro onde “quem
tinha padrinho não morria pagão” (desculpe a Corporação do Corpo de Bombeiros,
mas quando foi mesmo que os bombeiros vistoriaram prédios neste Rio de Janeiro
de “meu Deus”?), exijam que a cidade seja respeitada. Nós vamos gostar!
[1] Ver
mais em CHOAY, Françoise. Alegoria do
Patrimônio. Tradução de Luciano Vieira Machado. São Paulo: UNESP, 2000.
[2] Ver
mais em ROMERO, José Luis. América
Latina: as cidades e as ideias. Apresentação. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ,
2004, pp. 7-23
[3]
Ver mais em ESCOLANO, Agustín. Arquitetura como programa. Espaço- escola e
currículo. In VIÑAO FRAGO, Antonio e ESCOLANO, Agustín. Currículo, espaço e subjetividade:
a arquitetura como programa. Trad. Alfredo Veiga-Neto. Rio de Janeiro:
DP&A, 1998. pp.21-57
[4] Ver
mais em NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In:
Projeto História. São Paulo, nº 10,
p. 7-28, dez. 1993.
[5]
Ver mais em CHARTIER, Roger. “Cultura Popular”: revisitando um conceito
historiográfico. Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, vol. 8, n . 16, 1995, p.179-192.
[6]
Para saber mais leia: ROCHA, Oswaldo Porto. A Era das Demolições: cidade do Rio
de Janeiro(1870- 1920)/ CARVALHO, Lia de Aquino. Habitações Populares: Rio de
Janeiro (1866-1906). 2ª ed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura,
Departamento Geral de doc. E Inf. Cultural, Divisão de Editoração, 1995.
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