Apresentado no Seminário Internacional REDES
(As REDES educativas e as tecnologias:
Transformações e Subversões na Atualidade).
UERJ, Rio de Janeiro, 3 a 6 de junho de 2013
Resumo
O objetivo
deste artigo é investigar as marcas de representação (CHARTIER, 2002) da
professora Esther Pedreira de Mello, na sociedade e no magistério carioca, nas
primeiras décadas do século XX, através dos rituais fúnebres realizados para
ela. As fontes utilizadas são os periódicos diários da cidade do Rio de Janeiro
como o Correio da Manhã (5/3/1923), O Jornal (5/3/1923), O Imparcial (5 e 6/3/1923), A Noite (5/3/1923) e O Paiz (6/3/1923), analisados a partir
das práticas mortuárias descritas por Rodrigues (1995), Goldberg e D’Ambrosio
(1992) e Ariès (2003). O uso dos rituais de morte como categoria de
análise não é usual, mas permite que, no momento em que a cidade do Rio de
Janeiro atravessava uma série de mudanças topográficas e culturais com vistas à
civilização e à modernidade, e se adequava a um novo mundo de pós-guerra, se possa
estabelecer, através destes ritos, mudanças culturais e a “necessidade de
pensar os processos de civilização ou as transformações sociais, recorrendo aos
tempos longos, mesmo que descontínuos” (CHARTIER, 2002, p.17) para visibilizar
impressões e marcas de representação desta professora, na sociedade e no
magistério da cidade do Rio de Janeiro.
Palavras-chave: Esther Pedreira de
Mello; marcas de representação; mudanças culturais na cidade do Rio de Janeiro;
rituais fúnebres.
Morte: “Amiga do tempo e irmã do sono”[1]
“Uma longa
viagem que apenas começou” (p.20) é o modo como Goldberg e D’Ambrosio (1992)
explicitaram sua pesquisa sobre a morte. É a contradição entre o que começa,
nasce, aparece, para um espaço temporal não visível, incomensurável, para o que
termina; morre, desaparece, para um espaço temporal finito, ou infinito; não
visível e ainda, segundo a crença, também sem começo ou fim. Desta forma,
também, de uma longa viagem que começa, ou (re) começa, é minha narrativa[2]
sobre Esther Pedreira de Mello. Não por tido a personagem uma vida intensa e
curta, mas pela ritualidade expressa na sua morte, e pós-morte, publicizada
pela imprensa diária carioca, marcando a importância da professora na sociedade,
através de seu papel no movimento emancipacionista feminino, da cidade do Rio
de Janeiro e na Instrução Pública do
Distrito Federal, através de sua atuação profissional no magistério. Como
enfatiza Braudel (1970) o grande milagre do historiador é, ao tocar uma pessoa
que investigamos torná-la viva, vencendo, assim, a morte. Roger Chartier (2002)
lembra que “toda reflexão metodológica enraíza-se, com efeito, numa prática
histórica particular, num espaço de trabalho específico”(p.78), por isso a
preocupação de situar Esther Pedreira de Mello, objeto de meu estudo, na
sociedade em que viveu.
Ariès
(2003) comenta que
[...] cada homem revê sua vida inteira
no momento em que morre, de uma só vez. Acredita-se também que sua atitude
nesse momento dará à sua biografia seu sentido definitivo, sua conclusão.
(Ariès, 2003, p.53).
O ritual da
morte é uma representação cultural onde símbolos e mitologias se entrelaçam
para explicar aquilo que o homem tem medo de (re) conhecer, mas que, como tudo
que se passa numa dada sociedade, num tempo determinado, muda enquanto prática,
porque muda enquanto representação[3].
A
historiografia, centrada nos limites de usos políticos e econômicos, deixa de
lado, por vezes, a dimensão imaginária da existência que, presente nos rituais,
especialmente o da morte, permitem pensar o desenvolvimento do historiar
enquanto prática de (re)significação da vida como ela foi. Esta a razão para usar tais práticas
através das representações que aparecem espontâneas, e por isso visíveis ao
historiador, para narrar a vida de uma
mulher como Esther, porque mulher não característica, do início do século XX.
Interessa identificar
os indícios e marcas simbólicas que transpareceram na morte da professora
Esther para melhor entender sua vida, seu tempo, o cotidiano cultural em que
vivia e a representação que vivenciou porque “a representação que os indivíduos
e os grupos fornecem [...], através de suas práticas e de suas propriedades,
faz parte integrante de sua realidade social [...]”. (CHARTIER, 2002, p. 96)
A morte da
professora Esther Pedreira de Mello, e mais especificamente os rituais que a
homenageiam, trazem à tona a representação da mulher, da profissional, da
classe a que ela pertencia, do campo onde atuava, mas trazem, também, um viés
da História da cidade do Rio de Janeiro, vista através das práticas mortuárias,
ainda pouco estudadas dentro da História cultural.
Nos rituais
católicos “dos brancos”[4],
as representações que ainda se encontravam presentes na morte de Esther, em
1920, são também diferenciadas[5]. Diferenciadas pela classe social da morta.
Distinções havia, também, na ritualidade da morte de crianças, através das
vestimentas (mortalhas) usadas de acordo com o santo protetor do falecido
(RODRIGUES,1995, p. 212). O estudo da morte, pois, diz respeito a questões que
estão enraizadas no centro da vida humana, em qualquer época, em qualquer
lugar, e dependendo sempre, da religião a que se filiara o morto.
Apresentar o ritual fúnebre de Esther
Pedreira de Mello como representativo culturalmente de uma parcela da sociedade
do Rio de Janeiro de 1920 é, pois, contextualizá-la biograficamente através das
marcas e símbolos cristãos “dos brancos” que apareceram nítidos na hora de sua morte
e que são descritos nos necrológios e práticas pós-morte que a homenagearam.
Esther foi
católica praticante, Ministra da Fraternidade do Convento de Santo Antônio,
Filha de Maria, fez parte das Devotas de Nossa Senhora da Piedade, assim,
vincular a personagem ao simbolismo fúnebre cristão que a envolveu durante e
após sua morte é não só conveniente, como auxilia a entender e inseri-la na sua
temporalidade. Além disso é poder biografá-la tomando por base as análises
amparadas no indivíduo para uma interpretação da sociedade e dos processos ali
vividos
A fonte noticiosa: “a
morte está imersa na vida”[6]
Ainda que vários jornais diários importantes da cidade do Rio de Janeiro tenham
noticiado a morte de Esther Pedreira de Mello, concedendo um espaço generoso à
matéria, como a seguir demonstro, nenhum
deles foi tão completo na cobertura do fato noticioso quanto o periódico Correio da Manhã.
A
morte de d. Esther Pedreira de Mello
O seu
enterramento, hoje, no Cemitério S. João Baptista
Como
noticiámos em nossa edição extraordinária, sepultou-se hoje no Cemitério S.
João Baptista Exma. Sra. D. Esther
Pedreira de Mello, inspectora escolar do 2º districto. A cerimonia de
enterramento foi muito concorrida, notando-se, além do representante do Sr.
Prefeito, grande número de figuras de destaque no magistério, os diretores da
Instrucção Pública e da Escola Normal e comissões de varias secções da
Prefeitura. O féretro saiu da Escola Deodoro onde o corpo foi velado durante a
noite e a manhã de hoje, por alunos das escols públicas e colegas da extinta.
Sobre o féretro foram depositadas inúmeras coroas. (A Noite, 5 de março de 1923, p.4)
Lamentável perda para a instrucção
pública do Rio. Forte e enérgica, admiravelmente inteligente e de uma
inteligência disciplinada por uma cultura muito vasta, D. Esther Pedreira de
Mello, foi, à frente de um dos districtos escolares desta capital [...](O Jornal, 6 de março de 1923, p.3)
Esther Pedreira de Mello
Em homenagem a tão distinta senhora, que
tantos e inestimáveis serviços prestou ao ensino municipal, o Director da
Instrucção Pública deu hontem a denominação de “Esther Pedreira de Mello” à
actual 6ª escola mixta do 2º Districto. Por motivo do falecimento de D. Esther
Pedreira de Mello, foram suspensos os exames da Escola Normal, de que a
inteligente inspectora foi diretora, bem como as aulas de todas as escolas do
2º Districto Escolar. ( O Imparcial,
5 de março de 1923, p.3)
D. Esther Pedreira de Mello
No enterro da Exma. Senhora D. Esther
Pedreira de Mello, inspectora escolar da Prefeitura, o governador da cidade se
fez representar pelo seu secretario, mandando depositar uma coroa de flores
naturaes sobre o seu ataúde em reconhecimento aos valiosos serviços que prestou
à Prefeitura e ao ensino municipal. (O
Imparcial,6 de março de 1923, p.2)
Sepultou-se hontem, pela manhã, no
Cemitério de S. João Baptista, a ilustre educadora D. Esther Pedreira de Mello,
inspectora escolar do 2º Districto.O Dr. Alaor Prata, prefeito desta capital,
fez-se representar pelo dr. Francisco Jardim, seu secretário, no enterramento,
a que compareceram, o Dr. Carneiro Leão, diretor da Instrucção Pública, e
muitas outras autoridades do ensino, além de pessoas amigas, colegas de
magistério e discípulos. Sobre o ataúde foram depositadas numerosas coroas,
inclusive aquella enviada pelo Sr. Prefeito. Em signal de pesar, os exames da
Escola Normal foram suspensos no dia de hontem e a abertura das aulas das
escolas publicas foi adiada para hoje.(O
Paiz, 6 de março de 1923, p.4)
A imprensa não só divulgou, como
abriu espaço para noticiar a morte de Esther Pedreira de Mello. Espaço tomado à
morte de Ruy Barbosa, no mesmo dia. Enterrando-se, como Esther, no cemitério
São João Baptista, Ruy Barbosa tinha Isaías Guedes de Mello, pai da Esther, não
só como advogado, mas amigo da família.
Outro dado importante é que Esther,
vinda da elite, sempre esteve nos holofotes da imprensa, principalmente após
seu irmão, Heitor, jornalista conhecido, ter-se tornado secretário do tablóide Correio da Manhã. Pelas investigações
que pude realizar, desde 1902 Esther Pedreira de Mello era notícia nas inúmeras
atividades de sua vida. Após ter sido nomeada por Rodrigues Alves, em 1902,
inspetora escolar, suas atividades profissionais, aniversários, almoços,
discursos, conferências, subscrições, enfim, viraram notícias em diferentes
tablóides.
Por outro lado, como a repetir uma
mesma homenagem, destacam, todos os jornais os atributos de inteligência e
competência de Esther Pedreira de Mello. O
Imparcial durante dois dias dá a mesma notícia, sempre elogiosa.
Importante ressaltar que a linha de
frente da imprensa no Rio de Janeiro no primeiro decênio do século XX era
composta dos seguintes jornais: O
Imparcial, de José Eduardo de Macedo Soares; Correio da Manhã, de Edmundo Bittencourt; A Noite, de Irineu Marinho; A
Época, fundado por Vicente Piragibe, Vicente de Ouro Preto e J. B. Câmara
Canto. Todos oposicionistas.
O jornal Correio
da Manhã foi um dos mais antigos jornais brasileiros do século XX. Desde a
primeira edição, em 15 de junho de 1901, caracterizou-se, nas palavras de
Nelson Werneck Sodré (2004), por um “ferrenho oposicionismo, de extrema
virulência”, em contraste, segundo o historiador, com o “extremo servilismo” de
jornais concorrentes. Tinha uma linha editorial considerada independente. O
jornal O Paiz, também de grande
tiragem e popularidade, circulou no Rio de Janeiro entre 1884 e 1930 e era tido
por corrupto, vivendo sob a generosidade dos cofres públicos para apoiar, nas
matérias, os governantes.
O ritual da “boa morte”
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O falecimento de D. Esther
Pedreira de Mello importa numa lamentável perda para a instrucção publica do
Rio. Forte e energica, admiravelmente inteligente e de uma inteligência
disciplinada por uma cultura muito vasta, D.Esther Pedreira foi, à frente de um
dos districtos escolares desta capital, a mais tenaz e esclarecida das
atividades [...] A vida desta ilustre patrícia oferece traços raríssimos, em
nossa história intellectual.[...] Muito moça ainda, titulou-se pela Escola
Normal. A sua inteligência e seu esforço a haviam de fórma tão brilhante imposto
à consideração e ao respeito das colegas, que a estudante foi escolhida para
oradora da turma. Antes, ainda durante o curso, alumna pois, D. Esther já
regia, com uma rara competência, a cadeira de Pedagogia. Era esse o tempo em
que dirigia os negócios da Prefeitura o Dr. Francisco Pereira Passos. Dona
Esther de Mello produziu, em seu discurso de formatura, uma obra séria,
ponderada, incomparavelmente superior, a tudo se faz, comumente, nestes
discursos de despedidas de escolas. Tamanho foi o deslumbramento do velho
Passos diante daquela clara e lúcida inteligência de mulher de vinte anos, que
dois dias depois, sem que para isso interferisse o menor esforço, fez nomear a
oradora para o cargo de inspectora escolar do 2º districto.[...] (Correio da Manhã, 5/3/1923, p.3[7])
E, ao narrar
a morte do personagem, me questiono, como Ricoeur (2007), se a narrativa dará
conta do “corte epistemológico entre as histórias contadas” (p. 157) e das
fontes de que disponho para contá-las, de certa forma me apropriando do tempo
para tornar compreensível a narrativa.
Começo minha
análise do necrológio publicado no Correio
da Manhã pela imagem publicizada de Esther Pedreira de Mello, que encima a
matéria do jornal diário e conduz o leitor à escrita que vem a seguir[8].
É uma imagem feminina, sóbria, semicoberta pela sombra que o fotógrafo
desconhecido usa, talvez, para deixar implícito o pudor inerente à jovem
senhora retratada.
O fundo da
foto é “neutro, o indivíduo é ele mesmo e seria o mesmo em qualquer lugar.
Verdade, universalidade, humanidade. A mulher concentrou a elegância no
penteado e não usa jóias”(VEYNE, 2009, p. 19), exceto um fino colar terminado
por uma superfície circular que repousa sobre o seio discreto e encoberto por
uma blusa branca que retoca o rosto da fotografada. A imagem de Esther Pedreira
de Mello, que morreu aos quarenta e três anos, é divulgada jovem, bem diferente
da imagem que ostentava ao falecer, dando ao leitor a impressão de que falecera
mais nova ainda do que realmente era. Explica Goldemberg (2007) que “(...) a aparência é a parte visível que a
pessoa oferece à percepção sensorial do outro e todo ato social que utiliza a
aparência ocorre em um ambiente visual”(p.65) Essa “juventude” do retrato,
então, expressa, implicitamente, um ar de modernidade e frescor civilizatório
que interessava ao jornal publicizar e difundir na cidade do Rio de Janeiro, até em momentos
pouco próprios aos ardores políticos.
O Rio de Janeiro, no início do século
XX, assim como toda a sociedade brasileira, defronta- se com novos valores. O
Distrito Federal é polo irradiador de cultura, dita moda para toda a nação e
sintetiza o Brasil, não apenas para o “estrangeiro”, mas para o próprio
país. A cidade se moderniza e sua
imprensa incorpora às suas páginas a fotografia, técnica que sintetiza a
rapidez e a efemeridade do moderno. As tecnologias capazes de fornecer uma
dimensão à concepção temporal e espacial são decisivas na conformação do novo
mundo simbólico que emerge nesta passagem de século. O mundo se torna próximo e
visível. (LOUZADA, 2010, p.68)
O lembrar do
morto, e o necrológio faz parte do discurso a ele, apresenta e enaltece as
qualidades que teve o falecido e, se não as teve, esta escritura procura
agregá-las à imagem que se desejou fossem perpetuadas. É como um tributo valioso àquele que não mais
pode receber esta homenagem. E o redator da matéria foi laudatório, procurando
adjetivar cada sentença de modo a imprimir à Esther Pedreira de Mello
qualidades além do que se esperaria de qualquer pessoa. Muito além do que os
noticiosos já citados fizeram, embora tenham todos, enaltecido a morta.
Ressalto que o irmão de Esther, Heitor de Mello, era Secretário do jornal que
estampava o obituário, o que certamente influenciou a quem escreveu a matéria.
A sua morte ocorreu, hontem, na Casa de
Saude Crissiuma. Ali fora d. Esther internada a fim de operar-se de um velho
mal. A operação não teve êxito e a inditosa senhora, contra todos os recursos
médicos, veio a falecer. (ibidem)
O protocolo fúnebre
que acompanha a morte foi seguido à risca para que Esther pudesse ter “uma boa
morte”, como era comum na cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Um
ritual da “boa morte” era precedido pelo leito onde agonizava o corpo, prestes
a deixar a vida: Esther foi internada em uma Casa de Saúde tida pela sociedade
como de alto prestígio[9],
para uma operação para extirpar o “mal” que a afligia há tempos. Diz-no Duby (2009)
que:
No privado encontra-se o que possuímos
de mais precioso, que pertence somente a nós mesmos, que não diz respeito a
mais ninguém, que não deve ser divulgado, exposto, pois é muito diferente das aparências
que a honra exige guardar em público (p.8)
A não
divulgação da doença, poeticamente denominada “mal”, pertencia à norma da boa
etiqueta de não nomear certas doenças. A aura romântica que envolvia a doença
chamou, por exemplo, durante muito tempo, a tuberculose de “mal do século”; o
câncer, também, quando foi conhecido, era uma doença sequer nominada; nem todas
as doenças tinham denominações na segunda década do século XX e, se as tinham,
poucas eram ditas em voz alta. Qual teria sido a doença de Esther? Pela
especialidade do médico que a atendia, “parteiro”, há indícios que pode ter
sido um “mal feminino”[10].
Explica Ariès (1977) que a partir do século XIX, as imagens da morte são cada
vez mais raras, desaparecendo completamente no decorrer do século XX, o
silêncio que a partir de então, se estende sobre a morte significa que esta “rompeu
seus grilhões e se tornou uma força selvagem e incompreensível”. (p. 92)
Na verdade,
dentro do espetáculo que foi o enterramento de Esther Pedreira de Mello, esta é
questão insignificante para compreensão de sua vida, enquanto por si só, este
detalhe omitido. revele a representação social da falecida por sua causa mortis, pois a depender do status do morto na sociedade sua doença
pode, ou não, ser publicizada (RODRIGUES, 1995).
A transcrição
de parte da vida de Esther Pedreira de Mello no necrológio do Correio da Manhã, busca inseri-la no
campo dos intelectuais através da adjetivação conferida (“inteligência
disciplinada”, “cultura vasta”, “rara competência”) incutindo à biografada,
atos insólitos à inteligência feminina do período (“clara e lúcida inteligência
de mulher”). Como um ato incomum, e realmente o foi, cita o obituário o fato dela,
enquanto ainda uma aluna da Escola Normal, ser alçada a professora de
Pedagogia, da escola em que ainda estudava[11],
o que significava compartilhar da Congregação formada por seus professores,
homens e mulheres intelectuais e sujeitos a um pertencimento que não aceitava a
interferência do poder público (SANTOS, 2011).
Ainda que não
conste de seu obituário é lógico supor, tomando a prática realizada à época na
cidade do Rio de Janeiro e os indícios encontrados no artigo, que Esther morreu
deitada, “jazendo no leito” (ARIÈS, 2003, p.34), provavelmente cumprindo a
cerimônia que permitia que, de “costas, [mantivesse] os olhos para o céu”
(ibid, p.31), como católica que era, possivelmente a cumprir as fases da “boa
morte”: o lamento da vida, o perdão
pelos pecados cometidos e a recomendação, à Deus, de seus sobreviventes. A
seguir, provavelmente, conforme a norma ritualística, teria elevado o
pensamento a Deus através da “culpa e das preces” (RODRIGUES, 1995, p.177). O
jornal omite se Esther faleceu durante ou após a operação, o que reforça o
indício de que estivesse deitada ao morrer.
Nenhum item
deste ritual foi privado, embora a morte seja solitária. O público, segundo
Ariès (2003), é composto da família, que tem o papel de assegurar que o
falecido “[...] passe da sociedade palpável dos vivos à sociedade invisível dos
ancestrais [...]” (RODRIGUES, 1995, p. 173), e provavelmente, ali estavam a sua
mãe, Clara Albertina Pedreira de Mello, seus irmãos Heitor de Mello, D. Judith
Mello Moreira e a Madre Ruth Pedreira de Mello; do sacerdote, que “[...] é o
interlocutor entre o moribundo e Deus [...]” (ibidem, p.179) que, possivelmente,
ofertou à enferma o último sacramento, da extrema-unção, e, certamente, encomendou
à Deus “sua boníssima alma”; dos amigos mais próximos, testemunhas imparciais
do fato e que “ali se apresentavam para um último encontro” (ibidem, p.176), e
dos profissionais da Casa de Saúde Crissiuma, cuja função no ritual foi o de “marcar
a hora da passagem, de uma vida para outra”(ibidem).
Lidar com a
morte não é, nem nunca foi fácil para o homem, daí serem estabelecidos rituais
sociais, e também religiosos, para lidar com esta parte final da vida,
interdita nos discursos, no cotidiano e nas sociedades. A interdição que a
morte provoca vai buscar, no homem, seus medos recônditos do desconhecido, do
“estar por vir”, ao mesmo tempo em que nele aflora o sentimento da perda,
sempre sem explicação plausível.
Necrológio: Representações no ritual fúnebre
Ainda hoje lágrimas sinceras, lágrimas
que procuravam esconder, havia nos olhos de muitas das pessoas que conduziam ao
campo santo o corpo desta ilustre brasileira. É que d. Esther possuía a mais
rara das virtudes para um chefe: ella sabia ser enérgica sempre, sem jamais
deixar de ser amável e generosa.[...] Tendo ocorrido o falecimento na Casa de
Saude Crissiuma, foi o corpo da inditosa senhora conduzido para a Escola
Deodoro. Dalí saiu o enterro às 10 horas da manhã. Raramente se terá visto, no
Rio, um enterro mais comovente, mais tocante, que o que teve esta senhora. Todo
o corpo docente e discente dos estabelecimentos de ensino municipal se achava
representado. As escolas femininas compareceram por comissões de meninas,
vestidas de azul e branco. E na ocasião do saimento do coche, inummeras eram as
amigas, antigas companheiras da extincta, que choravam.(ibidem)[12]
Imagem 2 Escola Deodoro
Fonte: Arquitetura
Revista. FAU/UFRJ, Vol.8, 1990 p. 69
Relevante
notar algumas marcas do magistério, indicadas no necrológio, a partir da
escolha do lugar onde foi velada a professora Esther. Marca de sua
representação na estrutura do ensino, foi escolhida a Escola Deodoro, do 2º
Distrito Escolar, que Esther dirigia, para receber o corpo da inspetora
escolar. Esta escola tinha também a significação de ter sido construída no
governo do Prefeito Pereira Passos, o primeiro a reconhecer em Esther “uma
clara e lúcida inteligência de mulher”, um detalhe que é enfatizado no
necrológio[13]. Outra
marca ressaltada foi a nacionalidade brasileira (“A vida desta ilustre patrícia
oferece traços raríssimos, em nossa história intelectual [...]” imprimindo à professora um pertencimento à
meta republicana de, pela educação, “civilizar”; o uniforme a distinguir o
alunado e o gênero contido na instituição (“As escolas femininas compareceram
por comissões de meninas, vestidas de azul e branco[...]”) e a transmitir o
poder simbólico de identidade da instituição escolar (SILVA, 2006); a mulher
como parte do processo civilizador através da docência, a razão precípua da
escola (“Todo o corpo docente e discente dos estabelecimentos de ensino
municipal se achava representado[...]”). Todos estes marcos na escritura a traduzir, na
homenagem póstuma, a representação no magistério da professora morta.
Rodrigues
(1995), voltando-se para o estudo dos rituais mortuários na cidade do Rio de
Janeiro, explica-os como uma cena onde os personagens do “drama fúnebre se
distribuem através do espaço e do papel que representaram”, numa “interação do
teatro da vida com o teatro da morte”(p.14).
[...] A escola Deodoro, na Glória, foi
transformada em câmara mortuária, a pedido mesmo dos professores e
inspectores-escolares, desde hontem, até hoje, às 10 horas da manhã, esteve
repleta de pessoas que desejam prestar uma homenagem à virtuosa senhora. No
saguão, entre as escadas, foi armada a peça onde ficou depositado o caixão com
os restos mortaes de d. Esther Pedreira de Mello, velados em todo o tempo por
pessoas da família, altas autoridades da Instrucção Pública, professores,
professoras, discípulas, enfim, um numero elevadíssimo de pessoas que desejavam
render esta delicada homenagem. Cerca das 8 horas da manhã, de hoje, foi
celebrada uma missa de corpo presente, assistida por quantos velavam o cadáver
e por todos que iam acompanhar o féretro ao cemitério. Às 10 horas, como fora annunciado,
começaram, entre sentidas lágrimas de toda gente, os primeiros passos para o
saimento fúnebre. A seguir do transporte do crescido número de côroas, para um
caminhão do Corpo de Bombeiros, foi o caixão funebre conduzido exclusivamente
por professoras municipaes para o coche, já todo circulado por corôas de flores
naturaes.(ibidem)
O
ritual novamente é enfatizado, da mesma forma que o status e vínculo profissional de Esther Pedreira de Mello, através
das “ delicadas” homenagens prestadas à professora por seus pares do magistério
municipal. Diz Ariès (1977) que a dor, no ritual da morte, parece única,
espontânea, dando “[...] à morte um sentido novo. Exalta-a, dramatiza-a,
deseja-a impressionante e arrebatadora” (p.42-3).
O
necrológio de Esther é, não só um retrospecto de sua vida, como também a de sua
jornada profissional na Educação na cidade do Rio de Janeiro, nos primeiros
anos do século XX. Era tida, em vida, pelos jornais como “mulher inteligente,
embora enérgica”, com rara cultura e pertencente a uma conceituada família.
Tinha o mérito de ter dirigido austeramente a Escola Normal de modo a
“moralizar” a instituição, de ser pessoa preocupada com os pobres e a educação.
A cidade vivia,
quando de sua morte, um momento de transição cultural, onde coexistiam
representações novas, surgidas no pós - primeira guerra mundial, com
representações de hábitos e costumes ainda do século XIX. O tecido social
estava, então, esgarçado, impregnado de conflitos, embates, novos discursos que,
ao lado de novos atores na cena afetavam, entre outras coisas os costumes
fúnebres e o papel da mulher, cujas representações apareciam juntas, na morte e
na vida divulgada pelo necrológioo, de Esther Pedreira de Mello.
No enterro se
expressa, também, a coexistência de velhos hábitos do século XIX, como o
velamento do corpo sob o abrigo da Igreja, que convivem com a “civilizada” transição
do corpo para um local provisório, onde são realizados o velório e a missa de
corpo presente, diferente do local de enterro. O uso do padre no encomendamento
do corpo, “que era uma espécie de entrega da alma do morto a Deus” (RODRIGUES,
1995, p.216) o que até hoje persiste, coexistindo com o uso, ainda, de acordo
com a representação da posição social do morto, que permite que um padre vá a
outro local de velamento, distante da igreja, o que demonstra um separatismo
social presente ainda em pleno século XXI.
As missas de
corpo presente, que tinham o mesmo objetivo ritualístico de encomendar o corpo
a Deus, só eram realizadas de acordo com a posição social do morto, o que também
ainda hoje persistem. Nem todos os católicos têm direito a tal tipo de ritual
fúnebre.
Fica nítida a
posição da mulher, velada majoritariamente por mulheres e crianças, ou melhor, por
professoras e seus alunos uniformizados, em um mar “azul e branco” na
teatralidade do ato fúnebre. Todas estas representações coexistiram no enterro
e velamento de Esther.
Ariès (1977),
tomando o mundo como referência, explica as transformações ocorridas no ritual
fúnebre ao longo do tempo como mudanças nos costumes civilizatórios ou, até,
uma regressão de hábitos culturais:
[...] no século XIX esse limite – o das conveniências – não mais foi
respeitado, o luto se desenrola como ostentação além do usual. Simulou até não
estar obedecendo a uma obrigação mundana e ser a expressão mais espontânea e
mais insuperável de uma gravíssima dor: chora-se, desmaia-se, desfalece-se e
jejua-se como outrora os companheiros de Roland ou de Lancelot. É como um
retorno às formas excessivas e espontâneas – ao menos na aparência – da Alta
Idade Média, após sete séculos de sobriedade (p.45).
Explica-nos
Rodrigues (1995) que “aos "lugares de moradia" dos mortos
correspondia uma relação para com eles, de modo que ocupavam posição nas
representações culturais [...] ”(p.22).
Assim, o Cemitério de São Francisco Xavier, desde seu início, foi o
“campo santo” de pobres e escravos, nunca foi ocupado pela elite do Rio de
Janeiro. O Cemitério de São João Baptista servia, ao contrário, a população de
maiores recursos financeiros, como Esther e Ruy Barbosa. Ainda que fosse
proibida a instalação de cemitérios na cidade, Botafogo era considerado, em
1850, quando foi criado, lugar fora da área da cidade (RODRIGUES, 1995, p.141).
“A morte de D. Esther
Pedreira de Mello”[14]:
o espetáculo de enterramento
Entre o grande número de pessoas[15]
que velaram o corpo durante a noite, e o acompanharam a São João Baptista,
notámos: Eulina de Nazareth, por si e por Noemia Gomes Carneiro que não
compareceu por doente; Maria Mercedes Mendes Teixeira, Odette Borja, Leonel
Gonzaga, [...]PauloMaranhão por si e pelo inpector escolar Venerando da Graça,
Julio P. Rangel, Camille Vaunier, Maria Guterres Duque Estrada,[...] Orminda
Isabel Marques, Odete Borges, Luiza Capanema, Loreto Machado por si e pelo dr.
A. Solano, Presentaction Romén de Suñer, Venerando da Graça por si e pelo 13º
distrito, Elvira Nuzinska, Leonor Posada, por si e pela Escola Nerval de
Gouvêa, Mathilde Kryer, guardiã; [...] Julieta Capanema, Cecília Meireles,|Theodolina
Portella, Ordem 3ª de São Francisco de Assis (Fraternidade de Santo Antônio);
Cândida Drummond; Amélia Frazão do Araujo Cabrita, Amélia Cabrita, Jurema Pecegueiro do Amaral, Bertha Lutz por
si e pela Federação das Ligas pelo Progresso Feminista; Valentina Blosca, por
si e pela Liga do Districto Federal pelo
Progresso Feminista; U. de Castro Maia, F. Cabrita, Honorina Senna de Oliveira
Gomes por si e pela Escola Prudente de Moraes; Juracy Alves Gonçalves, Onésio
Coelho, Cândido Campos, Comissão da Escola Professor Frazão, Raul Leitão da
Cunha, C. Hasselmann, Djalma Hasselmann e senhora, Francisco Jardim, pelo
prefeito, Afrânio Peixoto, Virginia Pinto Cidade, Raul Brandão, Francisco P.
Mendes Vianna, Leonel Gonzaga, Othelo Reis e Maria José Reis, Arnaldo Alves por
si e pela administração do Correio da
Manhã, Luiz Vianna por si e pela redação do Correio da Manhã, Dr. Daniel
de Deus e família, Alvaro de Souza Gomes e Comissão pela Liga de Professores, Mme. De Sá Freire,
Olympia Bittig Borges por si e pela 13ª mixta do 15º districto, Dr. Oscar
Magarão por si e pela “A Rua”, Eduardo A. de Caldas Britto, inspector escolar;
Umbelina Guedes de Mello, Mucio Leão, J. Ramos, diretor da Escola Normal
Humberto Gotuzzo; Devoção de N.Sra. da Piedade, pela União Escola Santa
Thereza[..]
(Correio
da Manhã, 05/03/1920, p. 3)
O
grande número de pessoas a velar e acompanhar o enterramento mostra outra parte
do ritual de enterramento. Rodrigues (1997) comenta que
O momento em que saía o cortejo acompanhando o morto era o ápice da
morte-espetáculo, a pompa poderia ser expressa tanto na quantidade de
participantes, como no aparato dos objetos funerários. Se a morte era um
acontecimento individual para o que morria, para os que ficavam, era um
acontecimento social. (p. 217)
O
enterro é tanto um momento social que é ali se pode atentar para a família do
morto, verificando quem lidera o grupo pela prestação das providências tomadas,
e quem deve ser mais consolado que outro pela proximidade com o morto; as
posses de quem morreu estão materializadas no caixão, no tipo de vela ou outro
qualquer paramento ritualístico, na escolha do cemitério...
Ou seja, o show dos funerais estava no cortejo e não na inumação propriamente
dita. Era o préstito - formado em tomo do cadáver e acrescido de espectadores
que, ainda que dele não participassem, paravam para vê-lo passar, os homens
tirando o chapéu em sinal de respeito - que era o alvo das atenções. Era este o
momento do espetáculo, onde ostentação e contrição caminhavam no mesmo passo,
sendo por vezes acrescidas da "algazarra ", em uma simbiose entre o
sagrado e o profano (RODRIGUES,
1997,p.222).
No caso de
Esther o jornal chegou a enfatizar o coche enfeitado com flores naturais. As
flores, sendo naturais, eram mais caras e mais apropriadas para a jovem senhora
donzela que estava sendo enterrada. O coche, instrumento do cortejo fúnebre,
deve revelar, aos passantes, a posição social do morto e, no caso de Esther o
coche era acompanhado de carros, um atrás do outro, mostrando a modernidade da
cidade através dos meios de transporte, a civilidade das pessoas presentes,
representando a si e a instituições públicas como a Prefeitura e a Instrução
Pública.
O cortejo era a ocasião para exterioridades - de que as pessoas
aparentavam tanto gostar. Nele se deveria expressar a pompa fúnebre, cujo fim
último era a manifestação do infinito desejo de salvação e a ânsia pela
redenção na eternidade (ibidem, p.221).
Das presenças
mais conhecidas pela historiografia destacamos: Cecília Meireles, ex-normalista,
professora a partir de 1918; Orminda Marques, diretora do Instituto de
Educação; Bertha Lutz, considerada uma feminista, Afrânio Peixoto, professor,
escritor, reitor da Universidade do Distrito Federal e Raul Leitão da Cunha,
ex-Diretor da Instrução Pública.
Pelas
presenças que pude selecionar da longa lista que ocupou duas colunas inteiras,
estabeleci também as redes religiosas que Esther Pedreira de Mello frequentava,
os movimentos a que estava ligada, como a Federação do Progresso Feminino, as
escolas municipais que frequentava, os professores com quem estabelecia
contatos sociais e até seus educandários, fora da rede pública. Estava ali
também representada a Instrução Pública de gestão passada e da nova gestão, a
Prefeitura, seus parentes – que não nomeei – e até os jornais, Correio da Manhã, onde trabalhava seu
irmão Heitor, e A Rua.
“À nossa inspectora, homenagem” da
Escola José de Alencar; “Homenagem afetuosa” do Frotta Pessoa e Maria José; “À
Nhá Stella”, Emma; “À Esther, saudades” da Nanã Caré; “À querida Esther os
corações amargurados” de Augusto e Idalina Barcellos; “À mui presada diretora,
immensa saudade” da Pia União das Filhas de Maria da Cathedral; “Homenagem à Esther
de Mello”, Maria Carolina; “Homenagem à Esther de Mello”, Noemi de
Mello;”Homenagem à Esther de Mello”, Azeneth de Carvalho; “À Esther”, Floripes;
“Homenagem da Escola Rodrigues Alves”; “Homenagem da Escola Celestino da Silva
à sua inspectora D. Esther”; Homenagem da Escola Leitão da Cunha à dedicada
inspectora D. Esther de Mello”; “Preito de estima e reconhecimento”, de Sisino
Nascimento; “Homenagem da Escola Carlos Chagas”; “Saudades”. Homenagem dos
alunos da Escola Deodoro; “À amada madrinha, um último beijo”, de Adelina;
“Homenagem do corpo docente da Escola Tavares Bastos”; “Saudades de Maria Luiza
de Queiroz – Beijos de Luzia”; “Saudades e gratidão do pessoal docente da
escola Deodoro”; “À querida madrinha saudade eterna” de Domitilia; “Homenagem
da Escola Tiradentes”; À sua saudosa inspectora homenagem” da Escola Barth;
“Homenagem da Caixa Escolar Álvaro Baptista”; “Saudade” de Cinira de Oliveira;
“Homenagem” de Bertha Lutz; “Homenagem da Federação das Ligas pelo Progresso
Feminino”; À Esther infinitas saudades” de Arlindo; ``A d. Esther P. de Mello
homenagens” do Prefeito; À querida filha, saudades eternas”; “À querida irmã e
tia” Heitor, Almerinda e filhos; “À D. Esther P. de Mello, homenagem” da
Diretoria Geral de Instrucção; “À D. Esther P. de Mello, homenagem” do Correio
da Manhã; “À D. Esther, eterna gratidão”,Maria José Fernandes; “À Esther,
homenagem” dos inspectores escolares.
Interessante
notar que, sendo Esther uma mulher que viveu entre dois séculos, o XIX e o XX,
vivenciou, como mulher branca de elite, a escravidão como uma menina, “sinhazinha”,
com mucama ou escrava própria, ou ainda escrava-de-leite. Uma das coroas
enviadas e citadas no necrológio demonstra esta marca: “À Esther, saudades” da
Nanã Caré”.
Pelas coroas
pude estabelecer, também as redes de sociabilidade com a Prefeitura, a Instrução
Pública, as escolas, os inspetores escolares, a Federação das ligas para o
Progresso Feminino e com a Pia União das Filhas de Maria da Catedral, além das
relações pessoais de maior ou menor intimidade face ao texto exposto.
Ao analisar o
culto aos mortos, Àries (1977) comenta que, embora ele pareça ter, no “caráter
exaltado e comovente” (p. 50) origem cristã, sua origem é, na verdade,
positivista. Ocorre é que o catolicismo com tanta perfeição o assimilou que “os
católicos [...] logo acreditaram-no nascido entre eles”(ibidem). A ruptura que
se estabelece a partir do século XX, por conta da recusa à morte, da interdição
a ela, não se faz por romantismo, mas porque a morte não vende bem: “não se
vende bem o que não tem valor por ser demasiado familiar e comum, nem o que
provoca medo, horror ou sofrimento.” (ibidem, p. 58).
Conclusão ou interregno da existência
A
morte de Esther Pedreira de Mello e o ritual fúnebre a que foi submetida
permitem visibilizar as representações da professora no magistério da cidade do
Rio de Janeiro, mas possibilitam, também, trazer à luz uma série de hábitos
culturais interditos porque levam, na percepção de Àries (1977) ao horror: os
rituais mortuários. Ao decidir começar minha escrita sobre Esther Pedreira de
Mello, uma professora formada na Escola Normal do Distrito Federal, professora
de Pedagogia desta mesma instituição, enquanto não se havia formado, depois sua
primeira Diretora do sexo feminino, três anos antes de sua morte, não a
imaginei, pela prática docente, vinculada apenas às representações do
magistério. Foi uma mulher que viveu pouco, mas intensamente, as mudanças do
período e deste modo desejei mostrá-la. O uso do necrológio, eu sei, é pouco
usual porque, como tudo relacionado à morte, é interdito para o discurso, para
a escrita e até para a pesquisa. “Diante da Morte angústia e medo somam-se”
(Goldberg e D’Ambrosio,1992, p.21). Mas de todos os hábitos sociais numa cidade
que se transformava, ainda, e parece, ainda hoje, estar se transformando, os
relacionados aos rituais fúnebres foram o que melhor relacionaram as
transformações urbanas e as culturais proporcionando um painel claro de um
momento agitado e de uma mulher complexa. Afinal a tive neste artigo mais como
“companheira de viagem” (ibidem) de modo a relativizá-la dentre outras
categorias de análise.
Importante
ressaltar que Esther Pedreira de Mello, embora citada pela historiografia,
nunca foi relacionada nem ao magistério, nem ao movimento feminista que se
iniciava através das Ligas para o Progresso Feminino. Ela, diferente de todas
as demais mulheres citadas na I Conferência para o Progresso Feminino, ainda
que fizesse parte da Comissão de Educação, não foi relacionada a nenhum cargo,
a nenhuma função. No entanto, segundo os periódicos ela representava ali a
Instrução Pública do Distrito Federal. Da mesma forma foi ignorada pela
historiografia a prevalência de ser a primeira mulher a ocupar, em 1902 a
docência das aulas de Pedagogia na Escola Normal do Distrito Federal. Como
também o foi o fato de ser a primeira inspetora-escolar, de ocupar o cargo de
primeira diretora de uma escola de formação de professores no Brasil. Esther
nunca foi associada, nos estudos de gênero, como uma feminista, embora o fosse.
Investigar
alguém a partir de seu necrológio e de outras faces do ritual fúnebre foi
necessário. O ritual da morte é visto como de alguém que chega para uma partida
inexplicável ainda que esperada, ainda que inesperada, em termos temporais. Dizem
Goldeberg e D’Ambrosio (1992) que “a tendência é recordar o falecido por
reminiscências, nem sempre muito exatas”(p.24) por isso confrontei os dados do
necrológio com outras fontes. Mas, talvez tenha usado a memória dos periódicos
para aproximar o passado e trazer Esther Pedreira de Mello, como “ o Outro”
(ibidem), um pouco mais perto de nós.
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pp.11-212
[1] Amiga
do tempo e irmã do sono[...]. (GOLDBERG e D’AMBROSIO, 1992, p. 11)
[2]
Tomo aqui a expressão narrativa no sentido de Antonie Prost (2005) de que “a
narrativa não é necessariamente linear; [...] que adapta-se a múltiplos
procedimentos literários que tornam a exposição mais significativa; [...] que
presta-se à explicação das mudanças[...] p.(212- 215)
[3]
O conceito de representações proposto por Chartier (1990, p.17) é explicado a
partir da contribuição de vários autores. A investigação de Bourdieu (1998b,
p.63) é, fundamentalmente, a base na qual Chartier (1990) se apoia. As
representações são entendidas, então, como
classificações e divisões que organizam a apreensão do mundo social, ou seja,
como categorias de percepção do real. As representações são variáveis de acordo
com as disposições e necessidades dos grupos ou classes sociais; desejam à
universalidade, mas são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as
forjaram. O poder e a dominação estão sempre presentes nas representações.
[4] As
representações dos negros eram diferentes e obedeciam à nação de onde vinham
seus ancestrais.
[5] As
normas fúnebres na cidade do Rio de Janeiro começam a mudar em 1850, após a
grande epidemia de febre amarela.
[6][...]
a Morte está imersa na vida. (GOLDBERG e D’AMBROSIO, 1992, p. 11)
[7]
Obedecida a grafia do texto oficial. O trecho faz parte do longo necrológio do
periódico Correio da Manhã.
[8]
A imprensa de massa no Brasil se desenvolve na primeira metade do século XX com
[...] a utilização da fotografia como elemento noticioso. Um novo olhar mediado
pelo aparelho fotográfico é difundido nos periódicos que proliferam no Rio de
Janeiro e que utilizam a fotografia [como] o ícone da modernidade. (LOUZADA,
2010,p.67)
[9]
Em anúncio propagandístico da instituição Casa de Saude Crissiuma, no Almanak
Laemmert , a instituição se nomeava como
“de 1ª ordem, sob a direção do Dr. Crissiuma Filho” (1924, p.1297)
[10]
O “mal feminino” pode ser encarado como o faz Gebara (1999): “Ele passa a ter o
direito de ser pensado como um discurso pertinente sobre uma experiência
particular marcada pela própria situação de gênero. Deixa de ser assimilado de
forma simplista aos males genéricos que tocam toda a humanidade como se esses
males fossem os mesmos para todas as pessoas (p. 275).
[11]
Consta dos registros escolares da aluna Esther Pedreira de Mello que, em 1902,
ela havia cumprido o currículo exigido pelo Regulamento da Escola Normal, mas
não tinha, ainda, prestado os Exames Práticos no qual deveria ser aprovada para
ser nomeada professora pública do Distrito Federal. (Livro de Matrículas,
1897-1902)
[12]
Obedecida a grafia do jornal no necrológio.
[13]
A morte de Ruy Barbosa, na mesma data de Esther, marcou, também, sua
representação no tecido político-social. A notícia de sua morte ocupa espaço
nos jornais como a Ruy, No Correio da
Manhã ocupa mais. Segundo o mesmo periódico, de 4 de março de 1923, o corpo
do político ficaria em “câmara ardente no Cemitério de S. João Baptista, até a
conclusão do mausoléu [...] “( Correio da Manhã,5/3/1923 p.1)
[14]
Manchete de A Noite de 5 de março de
1923, p.4
[15]
Ainda que o jornal Correio da Manhã (1923, p. 3) tenha listado um número grande
de pessoas presentes, selecionei algumas que pudessem apresentar a
representação de Esther Pedreira de Mello.
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