Ator Lázaro Ramos, interpretando o capoerista Zé Navalha, na novela da Rede Globo de Televisão, "Lado a Lado" |
Estava vendo a novela das seis e lembrei-me, ao ver cenas do "bota-abaixo", e a ação dos capoeiras para salvaguardar o cortiço, de um texto que escrevi sobre o tema, ao investigar aquele período da História da cidade do Rio de Janeiro, o que foi muito bom para entender o que agora estudo. O que na novela levou apenas um capítulo, para onde foram parar aqueles que saíram, expulsos, dos cortiços, é um dos temas periféricos de minha pesquisa atual.
Meu texto é sobre o Cabeça de Porco, um dos maiores cortiços que a cidade teve e que mantinha em seu portal uma cabeça de porco. Tão importante foi este cortiço que a nomenclatura criada a partir de seu nome deu origem a distinguir conglomerados de moradias, em um espaço comum.
Os valhacoutos de desordeiros[1]
Não só a intenção de mostrar-se ao mundo, mas o que a
população urbana que imitava Paris dizia, e a imprensa acompanhava, assim como
a ordem pública, era que os cortiços eram tidos como valhacouto de desordeiros (CHALHOUB,1996)
Os cortiços foram uma preocupação administrativa desde
que a higiene tornou-se, por força de necessidade pública e matadouro de
estrangeiros e habitantes da cidade, o tema de debates na Câmara. Havia déficit
de moradias na cidade do Rio de Janeiro que crescia e era sede do poder político.
Por outro lado, com o término da guerra do Paraguai e mais tarde a abolição da
escravatura, deixou-se ao léu grande parte dos negros que vieram engrossar o
contingente de capoeiras - grande problema da polícia, que na verdade não eram
visto apenas como homens contendores que investem, saltam, esgueiram-se, pinoteiam, simulam, deitam-se,
levantam-se e em um só instante, servem-se dos pés, da cabeça, das mãos, da
faca, da navalha,(MORAES FILHO, 1979) do corpo e seus movimentos ágeis, para
derrubar ou matar[2] -
razão pela qual eram a grande preocupação em lugares, como os cortiços, que
podiam ser redutos de capoeiras e desordeiros de toda a ordem. Os cortiços eram
o lar de muitas famílias sem casa, de trabalhadores imigrantes que trabalhavam
em profissões pouco valorizadas ou procuravam emprego, de ex- escravos que
tentavam consertar a vida, de gente que chegava ou ia partir. Os cortiços eram
ao mesmo tempo feios, pela pobreza do lugar, e belos, com suas muitas roupas
quarando ao sol quente do Rio de Janeiro como a emoldurar, feito bandeiras, as
necessidades e aflições que o governo não podia, ou não queria resolver.
Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava,
abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas. Um
acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo.
Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da
ultima guitarra da noite antecedente, dissolvendo‑se à luz loura e tenra da
aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia. A roupa lavada,
que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o ar e punha‑lhe um farto acre
de sabão ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em
alguns pontos azuladas pelo anil, mostravam uma palidez grisalha e triste,
feita de acumulações de espumas secas. Entretanto, das portas surgiam cabeças
congestionadas de sono; ouviam‑se amplos bocejos, fortes como o marulhar das
ondas; pigarreava‑se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar;
o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam‑se de
janela para janela as primeiras palavras, os bons‑dias; reatavam‑se conversas
interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas
vinham choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se
formava, destacavam‑se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde,
grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos
saiam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e
os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam‑se ruidosamente, espanejando‑se
à luz nova do dia. Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma
aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara,
incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco
palmos. O chão inundava‑se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as
coxas para não as molhar; via‑se‑lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço,
que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens,
esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário metiam a cabeça bem
debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e
fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era
um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se
demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças
não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam‑se ali mesmo, no capinzal dos
fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas. O rumor crescia,
condensando‑se; o zunzum de todos os dias acentuava‑se; já se não destacavam
vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. Começavam
a fazer compras na venda; ensarilhavam‑se discussões e resingas; ouviam‑se
gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava‑se. Sentia‑se naquela
fermentação sangüínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham
os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir,
a triunfante satisfação de respirar sobre a terra.Da porta da venda que dava
para o cortiço iam e vinham como formigas; fazendo compras [...] (Azevedo, Aluísio de . O Cortiço.1999, p. 25)
Diz
Chaloub (1996) que, como o pobre não conseguia acumular riquezas era visto como
não tendo a virtude de ser um trabalhador, de ter o vício da ociosidade, por
isso a classe pobre era tida como viciosa, de modo que vício era sinônimo de
pobreza e vagabundagem.
Como a cidade do Rio de Janeiro era tomada
pelo comércio ambulante desde o oitocentos, com aguadeiros e mascates que
vagavam pelos logradouros com malas repletas de quinquilharias e gritos que
caracterizavam o que estava sendo vendido (PARGA,1996), não havia como não
achar a cidade feia e longe da modernidade que se pretendia, pois este trabalho
era realizado em grande parte pelos negros, sendo um ofício desprezados pelos
chamados brasileiros. Achava-se que trabalhadores braçais não eram bem vistos,
eram pouco ou nada valorizados, ainda que fossem ocupantes de ofícios
indispensáveis numa sociedade que crescia e não tinha transportes suficientes
nem baratos para levar quem queria comprar a quem pretendia vender.
Cortiço da Rua dos Inválidos, final século XIX
Fonte:
http://historiaestudosurbanos.blogspot.com
Estes ofícios, na sociedade que
crescia e se redimensionava, mesmo tendo começado com negros já alcançavam os
imigrantes, o que contrapunha as expectativas de ter um empregado pobre, mas
branco e europeu. Aos poucos, os
chamados “civilizados” disputavam espaços de trabalho braçal com negros
de tal forma que o que era visto como “decadência social” vai transmutando-se
como aceitável. (SILVA, 2009)
Em
1893 o Prefeito do Distrito Federal. Barata Ribeiro resolveu exterminar o maior
cortiço da cidade e, para isso, à noite, fechou a entrada do “Cabeça de Porco”,
[...] impedindo qualquer tipo de circulação – fosse de entrada ou de saída – do
lugar. O cortiço se constituía de[...] um
grande portal, em arcada,ornamentado com a figura de uma cabeça de porco,[que]
tinha atrás de si um corredor central e
duas longas alas com mais de uma centena de casinhas.(CHALOUB,1996)
Capa da Revista Illustrada
Revista Illustrada nº 656 (26 de janeiro de 1893)
Fonte:
http://www.projetomemoria.art.br/
Três dias antes da invasão o proprietário do
local havia recebido da Intendência Municipal a ordem de desocupação. Era uma
desocupação complexa e bem articulada de modo a constituir-se numa estratégia
de guerra aos tempos de atraso: uma tropa da polícia invadiu o cortiço, as ruas
transversais tinham a cavalaria para proteção e qualquer eventualidade de fuga
ou resistência, na retaguarda, outro grupo de policiais subiu o morro para que
se completasse o cerco.
Pelos
jornais da época, se pode ter uma idéia do número de habitantes do cortiço,
embora a Gazeta de Notícias tenha
estimado que, depois da visita da Inspetoria Geral de Higiene e do fechamento
de uma ala inteira, houvesse, naquele dia, cerca de 400 habitantes no “Cabeça
de Porco”. Chaloub (1996) estima que, em época áurea o cortiço tivesse quatro
mil pessoas.
A revista satirizava e explicava, a
quem não sabia ler, a derrubada do cortiço com a charge do cortiço Cabeça de
Porco, à Rua Barão de São Félix, 154. Em cima da cabeça do porco, uma barata,
que representava o primeiro Prefeito do Distrito Federal, Cândido Barata
Ribeiro e autor da medida de erradicação do cortiço.
Para assistir e prestigiar (-se) com a derruba do cortiço e
aliar à sua a imagem de moderno, civilizado e higienista, estiveram presentes
as autoridades capitaneadas pelo Prefeito Barata Ribeiro, o Chefe de Polícia, o
Engenheiro Municipal, o Médico Municipal,
o Secretário de Inspetoria Geral de Higiene, o Delegado da Inspetoria no
Distrito, o Fiscal da Freguesia, guardas fiscais, oficiais da Armada, do
Exército,da Brigada policial e alguns Intendentes. A todos interessava ser
visto como moderno, como preocupado com a higiene, como promotor e incentivador
da civilização na cidade do Rio de Janeiro. Eles, como a Congregação da Escola
Normal lutavam por estarem, com o novo regime, construindo uma nova nação
civilizada possível.
[1]
Lugar de desordeiros, guarita de brigões.
[2] Os
capoeiras nem sempre foram vistos como uma malta de bandidos. Casavam,
constituíam família, arranjavam trabalho. Dentre os grandes capoeiristas,
Moraes Filho (1979) cita o Mamede, o Chico Carne - Seca, o Fradinho e o
Bentevi, designando-os por valentes e
experientes na arte.
2 comentários:
Querida Heloisa, que espetáculo! A pesquisa é um caminho fantástico, onde se resgatam pessoas, contextos,... A pesquisa possibilita ainda a preservação da memoria e a compreensão do presente. Grata por poder compartilhar de seu belo trabalho.
Deixo aqui meu testemunho. Filha única de pais vindos do proletariado ( meu pai bombeiro hidráulico e minha mãe auxiliar de enfermagem ) cresci dos um aos 18 anos em uma casa de cômodo, dividindo cozinha, banheiro, quintal e tendo como espaço privado apenas uma sala e um quarto. Éramos seis familias e sete crianças. Havia Sr. José, vassoureiro, muito religioso que colecionava Bíblias e as colocava periodicamente para tomar ar. As demais familias eram oriundas de Recife, Ceará e Pernambuco. Meu pai e sua família eram de Minas. O dono da casa, o bom Sr. Eugênio era de familia italiana. Nascera e crescera na casa. Com a morte de seus pais,seus irmãos que morava lá também, não tinham mais condições de manter o casarão. Foi assim, que a casa, grande de dois andares, se transformou em casa de cômodo. Ali vivi uma infancia mágica, aprendendo costumes de outras regiões, aprendendo a partilhar espaços e brinquedos. Tenho imensa saudade daquela que considerei minha casa. Quando cresci descobri que as pessoas de classe média viam com desdem e de forma negativa as casas de comodo, consideradas lugarem de bagunça. Foi a educação recebida de minha mãe que me deu sabedoria para compreender os preconceitos com paciência. Naquele tempo não imaginava que um dia me tornaria socióloga. E quando me tornei, agradeci a Deus essa maravilhosa experiencia que me proporciou uma famila e irmãs geradas no afeto.
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