Faltando
poucas horas para a entrada do “Ano Bom”
de 2014 ainda fazemos uso, no Rio de Janeiro, de tradições. Para revivê-las, a
escrita de Alexandre José de Melo Morais Filho, de 1901, com reedições em 1946,
1967 e a última em 2002, pelo Senado Federal. Diz Silvio Romero, seu
prefaciador, que “tudo quanto é possível colher aqui no Rio entre as classes
proletárias, ciganos, negros, velhas pedintes... Ele tem procurado entesourar”.
E, não satisfeito, diz mais em seu prefácio laudatório:
…
Pelo que toca especialmente ao autor desta bela obra, posso dizer que, por mais
que tenha de ser acidentado o caminho do Brasil através dos tempos, quaisquer
que tenham de ser as desilusões que os destinos históricos lhe reservem, a
nossa raça há de sobreviver no futuro, e, lá bem longe, quando os sondadores do
passado houverem de rastejar o fio de ouro de nossas tradições, quando houverem
de estudar o povo, não no ruído das batalhas e nas chicanas da política, mas
sim nas efusões da alma, nas energias do sentimento, os dois livros de Melo
Morais Filho, onde seu coração palpita inteiro, suas poesias, que todas podem
receber o nome único de Cantos do Equador, suas descrições de costumes, que
todas podem ter o nome só de Festas e tradições populares do Brasil, hão de ser
chamados a depor, como documentos autênticos; porque neles vive a grande alma
deste país; porque intrepidez, que é o gênio lusitano transfigurado na América.
Salve! poeta adorável, que desprezaste as lantejoulas da moda, para continuar a
amar o sol de tua terra e enfeixar em tua palheta o brilho de seus raios! O teu
amor te salvou!
Desejando,
um Feliz “Ano Bom”, o memorialista, etnógrafo, folclorista, Alexandre José de
Melo Morais Filho...
***
No
Rio de Janeiro a folia toda começava de véspera. A cidade, mais animada
exteriormente pelo con curso de famílias e de indivíduos ambulantes, revelava o
júbilo público, que se os tentava sem reserva. Em qual quer praça, em qualquer
rua, quem olhasse para as janelas, notaria fisionomias estranhas, caras novas, que
pela maneira de apresentar-se, pela compostura, tornavam-se distintas de muitas
que lá estavam, apreciando o mesmo objeto, entretidas pelo mesmo assunto.
Nas
intermináveis galerias de sacadas, janelas de peitoril e postigos, viam-se
moças toucadas de flores naturais ao lado de algumas que não as tinham, homens
vesti dos de brim branco conversando com amigos trajados como para as recepções
íntimas, velhas folgazãs e gritadeiras falando para as vizinhas de defronte,
crianças traquinas e arrenegadas trepando nas grades de ferro das sacadas,
suspendendo dos espigões as maçanetas de chumbo das extremidades, que, às vezes,
lhes escapando das mãos, machucavam-lhes os pés. E o que queria isso dizer?
Eram
as famílias que tinham chega do da roça para passar o Ano-Bom com os parentes, convidando-os
para a véspera de S. João em seus sítios e fazendas... Aquelas cujas relações
não iam além da cor te, reuniam-se igualmente, completando o aspecto pitoresco
dessa cena, mais ou menos populosa, segundo os tempos em que esses costumes
eram de rigor.
Com
antecedência, já os presentes de festas principiavam a chover, e a escravatura
a fazer-se interessada nas felicidades de seus senhores. E as tradições
consolidavam as bases da família, e o reinado das superstições iluminava-se da
esperança. O dia de Ano-Bom era a época em que os membros de uma mesma família
congregavam-se. Vindo por vezes de
grandes distâncias, passavam juntos, no meio do prazer e das felicitações, até
depois de Reis.
Para
ver amanhecer o Ano-Novo, ninguém dormia antes da meia-noite, pois era da crença
popular, que quem se conservasse com os olhos abertos até depois daquela hora,
veria romper a aurora de anos seguintes. Então, concluídas as magníficas ceias,
as cantorias ao Menino em seu presepe, no fim das pilhérias dos velhos matutos,
de diálogos extravagantes, os inocentes namoros ferviam nas salas, ao diapasão
do barulho dos pratos que se lavavam nas cozinhas, das rascadas das senhoras com
as negras, do res sonar dos meninos es tirados nos sofás e nas cadeiras da sala
da frente, à espera do sinal do Ano-Novo.
Quando
o relógio batia meia-noite, uma onda marulhosa de alegria espraiava-se pela assembleia,
ao passo que as mucamas, os molecotes, as crias em fraldas de camisa, penduravam-se
às sacadinhas da escada que deitava para o quintal, pasma das de nada descobrir,
mas com os olhares fitos nas trevas que amortalhavam o ano velho.
– Boas saídas e melhores entradas! Diziam os pais aos filhos, as irmãs
aos irmãos, os parentes e ami gos entre si, abraçando-se, beijando-se, saltando
de con tentamento.
Nas
casas em que ha via bailes, o mesmo costume coroava a tradição, aos sons da
música, ao brilho das serpentinas faiscantes, aos risos que corriam límpidos de
uns lábios de rosa. Isso, porém, que prolongava a festa, mudava completamente no
dia primeiro. Da manhã à tarde, as visitas faziam-se, desfilavam numerosos os
portadores de presentes, sendo de preferência contemplados, nas freguesias, o
vigário, os médicos e o fiscal.
As bandas militares
tocavam às portas e nos saguões das casas dos generais, dos ministros, das
pessoas gradas, dando as boas festas;
compensando-lhes a atenção alguma cédula avultada ou peças de dinheiro em ouro.
Enquanto
nos armazéns de comestíveis o comércio encaixotava dúzias de garrafas de vinho,
acondicionava queijos do reino, presuntos, caixas de figos e ameixas, diversos
gêneros destinados aos fregueses do ano; enquanto do con vento da Ajuda,
riquíssimas bandejas de prata, com a firma do indivíduo presenteado, arma das
de doces, saíam umas após outras; era curioso de ver-se o que passava nas ruas,
entretendo os abelhudos que comentavam dos sobrados.
Por toda a par te
encontravam-se negros do ganho, de camisa de al go dão por fora da calça
arregaçada, conduzindo em cestos um leitão de barriga para cima, amarrado de
pés e mãos, com o focinho apertado com um barbante grosso, e guinchando,
acercado de galinhas, patos e marrecos, com a cabeça pendente das beiradas do
cesto e enfeitados nas asas com lacinhos
de fita. Para contrapeso, o ganhador não deixava de levar um galo ou um peru na
mão livre, também enfeitado de fitas estreitas verdes e azuis. Ao presente era
costume acompanhar um cartão de visita ou uma carta, concebi da mais ou menos
nestes termos:
“...Boas saídas e
melhores entradas lhe desejo. Incluso, encontrará vossa mercê um leitãozinho, umas galinhas e um peru
para mais um prato de seu jantar...”
Aqui
e além apareciam carregadores com caixões de vinho ou com caixas de açúcar, criados
de libré precedendo escravos enviados com dádivas principescas, tais como
colchas da Índia, aparelhos da China, baixelas de prata, cavalos de montaria,
fazendo contraste com a crioula ou mulata de casa menos rica, que se guia com
um pão-de-ló, um bolo-inglês, um pastelão numa salva modesta, coberta com uma
gaze cor-de-rosa, com um tope de flores artificiais no centro, atravessado por
um cartão ou um escrito.
A isso não se
limitavam os presentes. Pessoas ha via que ofertavam casas e palácios. O paço
de S. Cristóvão foi um presente de Ano-Bom, feito pelo negociante Eli as
Antônio Lopes a D. João VI, que o vendeu ao Estado, quando se retirou para
Portugal.
Considerava-se uma grande
falta, um crime, a ausência dos parentes mais chega dos no jantar da família.
Ninguém relevava essa falta, pois acreditava o povo que o que se fazia no primeiro
do ano, se faria o ano inteiro. Daí se depreende que cada um queria estar neste
dia com os seus, que todos vestiam roupa nova, que se brincava, tocava,
cantava, a fim de que o conceito popular se realizasse em sua plenitude pressagiosa.
Os
escravos, que nunca foram estranhos às alegrias ou desgraças do nosso lar, ganhavam
festas, tinham folga, divertiam- se também.
Por
ocasião dos banquetes fidalgos ou dos jantares menos opulentos, ao calor dos
brindes, ao alarido da canção:
Como canta o papagaio,
Como canta o periquito...
os convivas entusiasmados proferiam longos discursos,
os rapazes recitavam colcheias, as moças tímidas e vergonhosas abaixavam os
olhos às palavras “amor”, “meu bem”, refervendo a animação nas saúdes em honra
aos mais velhos, à família re unida.
As
visitas oficiais e as de amizade faziam-se imprescindíveis. Havia cortejo no
paço, os presepes pernoitavam iluminados, e – boas entra das – boas festas –
eram moeda corrente de civilidade entre a população. (p.31-37)
Fonte: Moraes
Filho, Melo (1843-1919). Festas e Tradições Populares do Brasil. Prefácio de
Sílvio Romero. Desenhos de Flumen Junius.
Brasília: Senado Federal, Conselho
Editorial, 2002.
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