JOÃO DO RIO |
João
do Rio trabalhou nos seguintes órgãos da imprensa: jornal Cidade do Rio (1899).
Rio Jornal, A Pátria (1926) e a revista Atlântica (1915) além de colaborado
também em periódicos de São Paulo e Portugal. Fundou e foi o primeiro diretor
da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (1917). Segundo seu biógrafo, João
Carlos Rodrigues, a obra de João do Rio pode ser considerada o «mais fértil
material sobre a cidade do Rio de Janeiro nas duas primeiras décadas deste
século, interessando igualmente a historiadores, antropólogos, urbanistas e
folcloristas».
Foi
este autor, memorialista, que escolhi para apresentar o Natal no Rio de
Janeiro. A crônica apresenta a visita do autor a quatro igrejas, os tipos que
ali estão, definindo as classes sociais e interesses de cada um, na noite de
Natal.
“A
missa do "galo" não começa precisamente à meia-noite e não tem a
obrigação de acabar antes de uma da manhã. A missa só, sem galo, o divino
sacrifício de que os casuístas espanhóis do século XIII faziam a anatomia –
talvez tivesse em tempos remotos uma hora precisa, exata, confirmada pelo
dogma. O galo, porém, varia e canta, ou adiantado ou com atraso. Ora, o chamar
a missa do Natal de Cristo missa do galo é ainda um costume latino. Os romanos
contavam as horas com uma certa poesia. Logo depois da media nocte, chamavam eles ao tempo gallicinium, hora em que o galo começa a cantar. A missa realizada,
assim, após a media nocte, ficou sendo a missa do galo, e é ainda o velho e
desusado gallicínium que se recorda
quando os sacerdotes levantam a hóstia nos altares, e de capoeira em capoeira,
sonoro e glorioso, se propaga o diálogo dos galos: Cristo nasceu! Onde? Em
Belém...
IGREJA DE SANT'ANNA |
Eu
estava exatamente defronte da igreja de Santana[1],
dispondo de um automóvel possante. Era a mais que alegre hora da meia-noite que
alguns temperamentos românticos ainda julgam sinistra. Aquele trecho da cidade
tinha um aspecto festivo, um estranho aspecto de anormalidade. Das ruas
laterais vindo em fila famílias da Cidade Nova, primeiro as crianças, depois as
mocinhas, às vezes ladeadas de mancebos amáveis, depois as matronas agasalhadas
em fichus; vinham marchando como quem vai para a ceifa, grossos machacares, de
chapelão e casaco grosso; vinham gingando negrinhas de vestido gomado; "cabras"
de calça bombacha, velhas pretas embrulhadas em xales. Era como uma série de
procissões em que as irmandades se separavam segundo as classes. No adro,
repleto, havia uma mistura de populaça em festa. Grupos de rapazes berravam
graças, bondes paravam despejando gente, vendedores ambulantes apregoavam doces
e comestíveis; todos os rostos abriam-se em fraterna alegria, e naquela
sarabanda humana, naquele vozear estonteante, uma nota predominava – a do
namoro. Os rapazes estavam ali para namorar, para aproveitar a ocasião. Os
encontros tinham sido de antemão combinados. Quando um grupo familiar
encontrava um rapaz o – oh! seu Antenor! Também por aqui! a resposta: oh! d.
Belinha, então também veio! – soavam como quem diz: oh! não faltaste... Havia
de resto pares de braço dado, meninas que murmuravam frases ao lado dos
mocetões, sob o olhar protetor das mamães... A missa era um alegre pretexto e,
se na classe burguesa o namoro tinha uma cor tão suave, nas outras irmandades o
entusiasmo era maior. Entrei no templo atrás de um grupo de mocinhos
entusiasmados, um dos quais teimava que havia de apertar, enquanto outro, com
uma carta de alfinetes, asseverava estar disposto a pregar alguns pares. O
grupo ria, a igreja estava repleta, quente, ardendo na nave de humanidade pouco
crente, ardendo de doçura superior nas velas dos altares. Mocinhas irrequietas,
rindo, abriam passagem; rapazes lamentavelmente espirituosos estabeleciam o
arrocho, empurrando o corpo como quem vai dançar o cakewalk e pretalhões de pastinhas, erguendo alto os chapéus de
palha, violentavam a massa com os cotovelos para chegar ao altar-mor. No ar
parado um sino bateu. Houve uma interjeição prolongada da multidão, ia começar
a missa. Era a missa do galo nos bairros...
Parei
na catedral. A enchente era tão colossal que havia gente até na rua.
O
templo ardia em luzes. De fora viam-se os sacerdotes de sobrepeliz dourada, a
candelária luminosa, os santos, e toda a igreja vibrava das graves harmonias do
órgão, realçadas por um coro abaritonado. A turba tinha outro aspecto. Senhoras
de chapéu, cavalheiros sempre com esse amável ar conquistador que o homem se
arroga nas festas públicas, de mistura com fuzileiros navais, marinheiros
alcoolizados, caixeirinhos do comércio de roupa nova e com os olhos cheios de
sono.
Toda
essa gente conseguia entrar e sair, fazer como um torvelinho à porta, onde duas
senhoras vestidas de negro, esticando uma sacola, diziam maquinalmente: – para
a cera! para a cera! Ninguém dava, ninguém se ralava. O sopro de excitação dos
sentidos parecia recrudescido pelo sopro musical do órgão. Figuras que saíam da
igreja vinham algumas congestas; as que entravam tinham uma violência aguçada
no olhar. Na rua, como que farejando, sujeitos iam e vinham entre os grupos de
malandros ébrios, de negros de capa no braço com um ar de copeiros de casa
rica, de mulheres conversadeiras. Encontro um repórter de jornal.
– Oh! tu também! que pândega, filho! Mas espera...
Indagou com o olhar a rua, sorriu, apertou-me o
braço, apressado:
– Até logo.
Dou de frente com um bando de gente de teatro. Uma
das atrizes assegura:
– Estou com os braços doendo...
E logo depois, deixando a atriz, encontro o protetor.
– Viste-a por aí? Olha só aquela família com
crianças. Só nesta terra! Eu não! Ceei com meus filhos: às dez horas tudo na
cama, e às onze deixei de ser pai-de-família.
– Muito bem.
Era a missa do galo na cidade...Que tinha eu?
Desgosto? Tristeza? Dor de cabeça? Sei lá! Despedi-me do ex-pai-de-família,
tomei de novo o automóvel que logo deslizou pela Rua da Assembléia para cair
numa vertiginosa carreira pela Avenida Central.
– Que é aquilo?
– É a missa do convento da Ajuda[2].
CONVENTO DA AJUDA (1907) |
Saltei.
A rua estava negra de gente. Os focos elétricos da Avenida mais de sombra
enchiam aquele canto – a porta tão triste onde a turba se acotovelava. Um
sujeito valente pisou três ou quatro pés, barafustou. Acompanhei-o. Era a missa
lá dentro imersa em tristeza infinda. Até os altares pareciam mais agourentos,
até as imagens guardavam na face uma dor mais amarga. E a missa trespassava a
alma, porque, enquanto o sacerdote ia e vinha no altar, por trás, na sombra,
perpetuamente na sombra, morta, enterrada, perdida para o mundo, a voz das
monjas varava o ar como o som de um cristal quebrado, retorcia-se no sacrifício
do louvor do deus que nascera de um seio humano, espiralava como uma contorção
histérica, soluçava cantando...
Ia mais adiante, mas na minha frente um latagão
bocejou:
– Que cacetada!
– É verdade, vamo-nos, respondeu a companheira.
– Ainda temos tempo de ir a Copacabana.
Consultou o relógio e começou a sair, imprimindo tal
movimento à massa de gente, que eu, com outros mais, de recuar tanto, me achei
de novo na porta triste e humilde.
– Ó José, vamos a Copacabana?
– Anda daí.
Copacabana devia ser divertido. Tomei de novo o
automóvel e disse ao chauffeur:
– Para Copacabana.
TRAMWAY (COLEÇÃO A. MORRISON) |
Naquele
delicioso percurso da Avenida Beira-Mar, toda ensopada de luz elétrica, outros
automóveis de toldo arriado, outros carros, outras conduções corriam na mesma
direção. Homens espapaçados nas almofadas davam vivas, mulheres de grandes
chapéus estralejavam risos, era uma estrepitosa e inédita corrida para Cítera.
Quando, no fim da avenida, os automóveis seguiram pelas antigas ruas, cada
encontro de bonde era uma catástrofe. Os tramways,
apesar de comboiarem três carros, iam com gente até aos tejadilhos, e essa
gente furiosa, numa fúria que lembrava bem a vertigem de Dionísios, berrava,
apostrofava, atirava bengaladas num despejo de corpos e de conveniências.
Entretanto, pelas mesmas ruas, a corrida aumentava e era uma disparada louca
entre vociferações, sons de corneta, tren-ten-tens de bondes, estalar de
chicote. Quando passamos o túnel num fracasso de metralha e demos nos campos de
Copacabana, a velocidade foi vertiginosa, e era apenas vagamente que se
divisavam, fugindo à sanha dos fon-fons, ao estrépito das rodas, a linha de
fiéis da redondeza marginando o capinzal e, à esquerda, num diadema de
estrelas, a iluminação da Igrejinha. Recostei-me. O automóvel saltava como um
orango ébrio, no piso mau. De repente fez uma curva e entrou numa rua cheia de
gente, de carros, de outros automóveis. Estávamos no grande sítio.
IGREJINHA DE COPACABANA, 1895 (FOTO MARC FERREZ) |
– É aqui?
– É.
Cerca
de três mil pessoas – pessoas de todas as classes, desde a mais alta e a mais
rica à mais pobre e à mais baixa, enchia aquele trecho, subia promontório
acima. E o aspecto era edificante. Grupos de rapazes apostavam em altos berros
subir à igreja pela rocha; mulheres em desvario galgavam a correr por outro
lado, patinhando a lama viscosa. Todos os trajes, todas as cores se confundiam
num amálgama formidável, todos os temperamentos, todas as taras, todos os
excessos, todas as perversões se entrelaçavam. Quis notar o elemento
predominante. Num trecho havia mais pretas com soldados. Adiante logo, o
domínio era de gente de serviço braçal, um pouco mais longe a tropa se fazia de
rapazelhos do comércio e, se dávamos um passo, outro grupo de mocinhas com
senhores conquistadores se nos antolhava. Todo esse pessoal gritava.
Logo
na subida encontrei um meninote engolindo uns restos de vinho do Porto pelo
gargalo da garrafa. Em meio do caminho um grupo do Clube dos Democráticos, de
guarda-chuva branco e preto, tocava guitarras e assobios. De todos os lados
partiam cantos de galo. Os cocoricós clássicos vinham finos, grossos,
roufenhos, em falsete: – Cocoricó! Cocoricô!
–Já ouviste cantar o galo?
– Pois hoje não é a missa dele?
– Cocoricó! pega ele pra capar!
– Pega!
A
igrejinha[3]
estava toda iluminada exteriormente à luz elétrica. Defronte de sua fachada
lateral haviam armado um botequim. A turba arfava aí, presa entre a bodega e o
templo. Quando eu passei, porém, a bodega fora devorada e bebida. Os caixeiros
tinham trepado para os balcões no desejo de apreciar a cena. Fiz um violento
esforço para entrar na igreja. À porta havia uma verdadeira luta e dentro
ninguém se podia mexer. Divisei apenas como indicação humilde do dia – um
presepe no lado esquerdo, um presepe com pano de fundo representando fielmente
um trecho de Cascadura, e estava assim embebido, quando de repente estalou o
rolo, o rolo rápido e habitual. Um sujeito apanhara uma bengalada, levantara o
guarda-chuva, uma menina gritara: – nunca mais venho à missa! E no roldão da
turba medrosa, de novo caí na ladeira, ouvindo os cocoricós, as chufas, as
graças sórdidas:
– Pega pra capar! Cocoricó! Já ouviste o galo?
No
céu cor de chumbo, ameaçador de temporais, espocavam girândolas de foguetes. E
todo aquele trecho, mais aquecido, mais feroz, mais cheio de gente redobrava de
deboche, de frenesi pândego, de loucura, quebrando copos, cantando, assobiando,
praguejando, ganindo.
Atirei-me dentro do automóvel, exausto. A máquina
disparou outra vez, lutando agora contra a massa dos carros, dos automóveis, dos
tramways [4]que
chegavam.
– Onde é a Lapa do Desterro [5]?
– Quer ir lá? É uma igreja de gente pobre. E na Lapa.
– Pois vamos lá.
IGREJA DA LAPA DO DESTERRO |
O
automóvel quebrou pela Rua da Lapa, parou defronte da velha igreja. Eram duas
horas da manhã. Havia à porta a mesma matula de homens endomingados à espera da
conquista, a mesma sarabanda de sirigaitas. Entrei. O tapete do templo, velho,
esfarripado, tinha por cima, em alguns trechos, folhas de mangueira. No
altar-mor, dos lados, entre panos azuis, ardiam dois bicos auer[6],
e aquela luz azul como transfigurava o rebátulo, os acessórios, os ouros
despolidos. A concorrência era menor, na nave, mulheres de xale formavam roda
conversando. Andei por ali tristemente. Ao sair, porém, vi de joelhos um homem.
De
joelhos? Na missa do galo? Deus! Quem seria aquele pobre coitado? Aproximei-me.
Era um rapaz – teria no máximo vinte anos. Ao lado o seu chapelão de coco
repousava junto à grossa bengala. No seu corpo ajustava-se demais um grosso
fato de inverno aldeão. De mãos postas, a face ingênua voltada para o altar,
esse ser, numa noite báquica, era tão anormal, tão extraordinário, que eu
cheguei bem perto, olhei bem, fui ao ponto de curvar-me para lhe espiar os
olhos. O pobre sobressaltou-se.
– Meu senhor!
– Que está você a fazer aí?
– Que estava? Ah? Perdão... Estava a rezar, estava a
pedir ao Menino Deus que dê saúdinha aos pais lá na terra e que me proteja.
– Donde é você?
– Saberá V. S a que do Douro, sim senhor.
Falava
de joelhos, a sorrir para mim; pobre alma ingênua e pura de aldeia, pobre alma
que se ia putrefazer na grande cidade, único coração que adorara Deus entre as
dez mil pessoas vistas por mim!
Oh!
Tive um ímpeto, o desejo de abraçá-lo, a sensação de quem, após uma longa
desilusão, sente viva no abismo fundo a flor maravilhosa. Mas já em torno se
fazia roda de ociosos, já um sujeito surgira com um riso de troça.
– Pois faz muito bem. Adeus.
– Adeus, meu senhor!
– E continuou – ó coisa incrível! – de joelhos,
voltado para Deus, lembrando a sua aldeia, lembrando os paizinhos, pedindo o
bem – enquanto pela cidade inteira as ceatas e as pândegas desencadeavam os
ímpetos desaçaimados...”
FONTE: RIO, João. "Como se Ouve a Missa do
Galo" crônica publicada em 1906.
[1] Em
1753 a região onde hoje existe o Campo de Santana passou a ser assim denominada
porque, com o surgimento das primeiras chácaras, foi construída ali a igreja
dedicada a Nossa Senhora de Santana.
[2]
O antigo convento das religiosas de Nossa Senhora da Conceição, mais conhecido
pelo nome de Convento da Ajuda, foi inaugurado num sábado, dia 30 de março de
1750, com grandes festejos populares, a que assistiu o governador Gomes Freire
de Andrade, Conde de Bobadela. O enorme casarão ficava situado na Rua da Ajuda,
uma das mais importantes do velho Rio de Janeiro, atualmente reduzida a um
diminuto trecho com o nome de Rua Chile. Começava aquele logradouro na Rua São
José, junto à Igreja do Parto (já demolida) e terminava no “mar de Santa
Luzia”. Na esquina da Rua do Passeio, onde é hoje a “Cinelândia”, ficava o
Convento. As noviças que ali se enclausuravam, por livre e espontânea vontade,
tinham o título de “conversas”. Até aos últimos dias do primeiro reinado, por
ocasião das festas do Natal e Reis, acorria o povo à Rua da Ajuda para ouvir o
seu cântico religioso. Com o correr dos anos, porém, tornando-se o local
impróprio para uma casa claustral, cedeu o Convento às exigências urbanísticas
da cidade, sendo transferido para Vila Isabel e demolido.
[3]
Onde hoje temos o Forte de Copacabana ficava a Igrejinha de Copacabana. Foi
demolida em 1918 para dar lugar ao forte de Copacabana. A imagem de Nossa Senhora de Copacabana, que
deu nome ao bairro, foi levada pela família Tefé para a cidade de Corrêas, em
Petrópolis. Não se sabe ao certo quando a Igrejinha de Copacabana foi fundada e
construída. Existem documentos mostrando que, em 1732, o bispo frei Antônio de Guadalupe, pedia
consertos no telhado da igreja, paredes, etc..
[4]
Em meados de 1872 surge a palavra bonde, originada pelo fato que naquela época
as passagens custavam 200 réis, e não existiam moedas de prata cunhadas deste
valor em circulação. Diante disso, a empresa emitiu pequenos cupons ou bilhetes
em grupo de cinco, pelo preço de um mil réis, devido à grande quantidade de
cédulas deste valor em circulação. Os bilhetes, ricamente ilustrados impressos
nos EUA, eram conhecidos como Bonds,
(bônus, ação). A própria empresa denominava bond tais cupons, por entender que
representava o compromisso assumido de, em troca, transportar o portador em de
seus veículos tramways. Com o tempo o
povo passou a denominar no próprio sistema carril de ferro urbano, o tramway, como bond, designação que mais tarde se consagrou com o neologismo
“bonde”.
[5]
Em 1751 o local era apenas um pequeno seminário criado pelo Padre Ângelo
Siqueira Ribeiro do Prado em louvor a N. S. da Lapa. A igreja veio a ser
construída pelos Carmelitas em 1810, junto ao Convento que foi destruído por um
incêndio. Ocorreram muitas reformas, e o prédio que hoje se vê é bem mais
recente, contudo guarda algumas relíquias valiosas, como telas cuja autoria é
atribuída a João Silva. São atribuídas a Mestre Valentim as imagens dos
Apóstolos, chapeadas em prata que constam do acervo da igreja.. A igreja tem
apenas uma torre tem explicação. Antigamente as igrejas só eram consideradas
totalmente construídas quando a segunda torre ficava pronta. A partir daí é que
se começava a pagar impostos ao governo. Por isso é que algumas igrejas têm só
uma torre, oficialmente não foram terminadas e assim não pagavam impostos.
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