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sábado, 2 de fevereiro de 2013

O CONCEITO DE PATRIMÔNIO E O CASO DO ANTIGO MUSEU DO ÍNDIO NO MARACANÃ, dentre outros

Containers que abrigam artefatos achados no Cais do Valongo
Escola Frienderech
Teatro Carlos Gomes interditado


Antigo Museu do índio



Não parece, mas vivemos em uma cidade, a única no mundo, que foi considerada pela UNESCO “Patrimônio Cultural da Humanidade”.
Que é patrimônio?[1]
Patrimônio. Esta bela e antiga palavra estava, na origem, ligada às estruturas familiares, econômicas e jurídicas de uma sociedade estável, enraizada no espaço e no tempo. Requalificada por diversos adjetivos (genético, natural, histórico, etc.) que fizeram dela um conceito "nômade", ela segue hoje uma trajetória diferente e retumbante. Patrimônio histórico. A expressão designa um bem destinado ao usufruto de uma comunidade que se ampliou a dimensões planetárias, constituído pela acumulação contínua de uma diversidade de objetos que se congregam por seu passado comum: obras e obras-primas das belas-artes e das artes aplicadas, trabalhos e produtos de todos os saberes e savoir-faire dos seres humanos. Em nossa sociedade errante, constantemente transformada pela mobilidade e ubiquidade de seu presente, "patrimônio histórico" tornou-se uma das palavras-chaves da tribo midiática. Ela remete a uma instituição e a uma mentalidade. A transferência semântica sofrida pela palavra revela a opacidade da coisa. O patrimônio histórico e as condutas a ele associadas encontram-se presos em estratos de significados cujas ambiguidades e contradições articulam e desarticulam dois mundos e duas visões de mundo. O culto que se rende hoje ao patrimônio histórico deve merecer de nós mais que a simples aprovação. Ele requer um questionamento porque se constitui num elemento revelador, negligenciado mas brilhante, de uma condição da sociedade e das questões que ela encerra. (CHOAY, 2000, p. 11-12)

Carioca e historiadora, gosto de ver preservados os monumentos desta minha cidade que tantas transformações sofreu desde 1565. Mudança de lugar (do Morro do Castelo para a planície, do centro para os bairros, etc.), alterações topográficas (tantas, dentre elas: desmonte de morros, aterramentos de mangues, desvios hidrográficos, etc.), alterações de vias (alargamentos de vielas estreitas, derrubada de cortiços e habitações populares, criação de boulevares) enfim. Alterações que foram mudando a cidade. Romero (2004) ao tratar da história das cidades latino-americanas apresenta-as como “lugar das mudanças”, explicando que elas podem dar a perceber interpretações historiográficas para iluminar o fenômeno das ideias nelas produzidas, fazendo peculiar o estudo de cada estrutura urbana porque remete às ideias ali construídas e sedimentadas[2].
Ao usar a expressão “não parece” no início deste meu triste desabafo, levo em conta os recentes fatos, explorados à exaustação pela mídia, da destruição do antigo Museu do Índio (onde nosso primeiro morador, o índio, teve que defender um espaço construído pelo homem branco e “civilizado” no século XIX); das peças arqueológicas encontradas no Cais do Valongo e depositadas em um container (naturalmente esperando que Deus olhe pelos artefatos que o homem do passado produziu); da escola Friedenreich (onde os professores, alunos e povo do Rio de Janeiro tiveram que explicar ao Prefeito da cidade, que se diz carioca, que a arquitetura escolar é patrimônio arquitetônico[3]).
Ao mesmo tempo, descobre-se, por conta da tragédia de Santa Maria (RS), que comoveu o país, ceifando vidas de tantos jovens, que  a comoção serviu para mostrar ao Prefeito e ao Governador que um número imenso de “lugares de cultura”, e me perdoem pela apropriação do termo de Pierre Nora[4],teatros, centros de exposições, bibliotecas foram INTERDITADOS porque não ofereciam segurança ao usuário e/ou não estavam com sua documentação correta ou não teriam sido avaliados pelo Corpo de Bombeiros. E me pergunto, sem conseguir responder-me: mas só agora descobriram isso? E aquele restaurante que explodiu na Praça Tiradentes, também ceifando vidas, que ninguém sabia (os bombeiros então?!) que tinha botijões de gás, em lugar indevido? Se o caso não fosse tão sério com acontecimentos tão trágicos, diria que estão querendo brincar com o povo que mora no Rio de Janeiro.
Ao ouvir nosso governador, filho de uma professora do Instituto de Educação, com quem já conversei, responsável pelo Museu da República e de um pesquisador como Sérgio Cabral, reconhecidamente um culto e sério, da cultura dita popular[5], dizer para milhões de telespectadores “que os índios não estão ali desde 1876, ou de 1786, ou...” Que bobagem!!! Desde quando governador patrimônio se mede por tempo de ocupação? Fosse assim, eu atravessava a baía de Guanabara e mandava destruir aquele maravilhoso museu que Niemeyer projetou e que integra acervo inestimável de nossa cultura arquitetônica. Ora Sérgio!!!
Eu não sou “gente importante”, não desejo 15 minutos de fama em mídia. Sou uma pesquisadora carioca que penso e digo o que penso. Mas peço que os administradores, Sérgio e Eduardo, levem em conta o que esta cidade representa e sempre representou. Levamos anos para sair do ostracismo a que a ditadura militar nos relegou. Saímos. O país inteiro pegou “carona”: seja nos royalties do petróleo, seja nos eventos que sediaremos (só o último jogo da Copa será realizado no Maracanã). Mas, não me lembro de, apesar da ditadura, ver algum estado da combalida federação brasileira ter lamentado o ocaso de uma cidade que foi sede da monarquia, sede da república, estado, ter sido incorporada a outro estado. Agora, na “mão grande” (não ligue, não, é uma expressão bem carioca da cultura popular, pergunte  a quem entende) vão levando tudo, e nossos administradores aceitam, sorrindo. Nós, os habitantes do Rio de Janeiro, não aceitamos.
Tudo isso é para dizer que, se a escola não vai abaixo (não ressuscite Pereira Passos, Eduardo, que vai uma distância grande e os objetivos dele não eram tão “nobres” assim como você pensa[6]) deva-o aos professores, alunos e ao povo do Rio de Janeiro. Se o antigo Museu do Índio não vai abaixo, deva-o aos índios que desde 1996 ocupam o espaço que o Estado descartou (olha só, Sérgio, você que conhece Paris [eu não tive esta sorte, sou professora do Estado e Município por concurso público, aposentada] deveria saber que lá, em Paris, o patrimônio é respeitado).
E o que você faz, ou tenta, sai querendo derrubar qualquer coisa que A ou B não consideram patrimônio!!! Em Paris, até o que restou das obras de Haussmann – o mentor intelectual das reformas no Rio do início do século – estão lá, como patrimônio.
Mas o povo não se mexeu quanto aos artefatos do Cais de Valongo, Eduardo. Vai jogar no lixo? Pelo menos escolha o lixo de um pesquisador, um antropólogo, um arqueólogo, um historiador... ele vai valorizar, porque vai pesquisar mais um pedaço da história desta cidade linda.
E quanto aos nossos “lugares de cultura”, Eduardo e Sérgio, é simples: ao invés de colocarem nos postos públicos pessoas amigas despreparadas que nem trabalham nem gerenciam, como se fazia nos tempos coloniais no Rio de Janeiro onde “quem tinha padrinho não morria pagão” (desculpe a Corporação do Corpo de Bombeiros, mas quando foi mesmo que os bombeiros vistoriaram prédios neste Rio de Janeiro de “meu Deus”?), exijam que a cidade seja respeitada. Nós vamos gostar!



[1] Ver mais em CHOAY, Françoise. Alegoria do Patrimônio. Tradução de Luciano Vieira Machado. São Paulo: UNESP, 2000.
[2] Ver mais em ROMERO, José Luis. América Latina: as cidades e as ideias. Apresentação. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2004, pp. 7-23
[3] Ver mais em ESCOLANO, Agustín. Arquitetura como programa. Espaço- escola e currículo. In VIÑAO FRAGO, Antonio e ESCOLANO, Agustín. Currículo, espaço e subjetividade: a arquitetura como programa. Trad. Alfredo Veiga-Neto. Rio de Janeiro: DP&A, 1998. pp.21-57
[4] Ver mais em NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto História. São Paulo, nº 10, p. 7-28, dez. 1993.
[5] Ver mais em CHARTIER, Roger. “Cultura Popular”: revisitando um conceito historiográfico. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n . 16, 1995, p.179-192.
[6] Para saber mais leia: ROCHA, Oswaldo Porto. A Era das Demolições: cidade do Rio de Janeiro(1870- 1920)/ CARVALHO, Lia de Aquino. Habitações Populares: Rio de Janeiro (1866-1906). 2ª ed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de doc. E Inf. Cultural, Divisão de Editoração, 1995. 

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