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terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Ano Bom: tradições no Rio de Janeiro na visão De Melo Morais






                Faltando poucas horas para a entrada  do “Ano Bom” de 2014 ainda fazemos uso, no Rio de Janeiro, de tradições. Para revivê-las, a escrita de Alexandre José de Melo Morais Filho, de 1901, com reedições em 1946, 1967 e a última em 2002, pelo Senado Federal. Diz Silvio Romero, seu prefaciador, que “tudo quanto é possível colher aqui no Rio entre as classes proletárias, ciganos, negros, velhas pedintes... Ele tem procurado entesourar”. E, não satisfeito, diz mais em seu prefácio laudatório:
… Pelo que toca especialmente ao autor desta bela obra, posso dizer que, por mais que tenha de ser acidentado o caminho do Brasil através dos tempos, quaisquer que tenham de ser as desilusões que os destinos históricos lhe reservem, a nossa raça há de sobreviver no futuro, e, lá bem longe, quando os sondadores do passado houverem de rastejar o fio de ouro de nossas tradições, quando houverem de estudar o povo, não no ruído das batalhas e nas chicanas da política, mas sim nas efusões da alma, nas energias do sentimento, os dois livros de Melo Morais Filho, onde seu coração palpita inteiro, suas poesias, que todas podem receber o nome único de Cantos do Equador, suas descrições de costumes, que todas podem ter o nome só de Festas e tradições populares do Brasil, hão de ser chamados a depor, como documentos autênticos; porque neles vive a grande alma deste país; porque intrepidez, que é o gênio lusitano transfigurado na América. Salve! poeta adorável, que desprezaste as lantejoulas da moda, para continuar a amar o sol de tua terra e enfeixar em tua palheta o brilho de seus raios! O teu amor te salvou!


                Desejando, um Feliz “Ano Bom”, o memorialista, etnógrafo, folclorista, Alexandre José de Melo Morais Filho...


***
                No Rio de Janeiro a folia toda começava de véspera. A cidade, mais animada exteriormente pelo con curso de famílias e de indivíduos ambulantes, revelava o júbilo público, que se os tentava sem reserva. Em qual quer praça, em qualquer rua, quem olhasse para as janelas, notaria fisionomias estranhas, caras novas, que pela maneira de apresentar-se, pela compostura, tornavam-se distintas de muitas que lá estavam, apreciando o mesmo objeto, entretidas pelo mesmo assunto.
                Nas intermináveis galerias de sacadas, janelas de peitoril e postigos, viam-se moças toucadas de flores naturais ao lado de algumas que não as tinham, homens vesti dos de brim branco conversando com amigos trajados como para as recepções íntimas, velhas folgazãs e gritadeiras falando para as vizinhas de defronte, crianças traquinas e arrenegadas trepando nas grades de ferro das sacadas, suspendendo dos espigões as maçanetas de chumbo das extremidades, que, às vezes, lhes escapando das mãos, machucavam-lhes os pés. E o que queria isso dizer?
                Eram as famílias que tinham chega do da roça para passar o Ano-Bom com os parentes, convidando-os para a véspera de S. João em seus sítios e fazendas... Aquelas cujas relações não iam além da cor te, reuniam-se igualmente, completando o aspecto pitoresco dessa cena, mais ou menos populosa, segundo os tempos em que esses costumes eram de rigor.
                Com antecedência, já os presentes de festas principiavam a chover, e a escravatura a fazer-se interessada nas felicidades de seus senhores. E as tradições consolidavam as bases da família, e o reinado das superstições iluminava-se da esperança. O dia de Ano-Bom era a época em que os membros de uma mesma família congregavam-se.  Vindo por vezes de grandes distâncias, passavam juntos, no meio do prazer e das felicitações, até depois de Reis.
                Para ver amanhecer o Ano-Novo, ninguém dormia antes da meia-noite, pois era da crença popular, que quem se conservasse com os olhos abertos até depois daquela hora, veria romper a aurora de anos seguintes. Então, concluídas as magníficas ceias, as cantorias ao Menino em seu presepe, no fim das pilhérias dos velhos matutos, de diálogos extravagantes, os inocentes namoros ferviam nas salas, ao diapasão do barulho dos pratos que se lavavam nas cozinhas, das rascadas das senhoras com as negras, do res sonar dos meninos es tirados nos sofás e nas cadeiras da sala da frente, à espera do sinal do Ano-Novo.
                Quando o relógio batia meia-noite, uma onda marulhosa de alegria espraiava-se pela assembleia, ao passo que as mucamas, os molecotes, as crias em fraldas de camisa, penduravam-se às sacadinhas da escada que deitava para o quintal, pasma das de nada descobrir, mas com os olhares fitos nas trevas que amortalhavam o ano velho.

– Boas saídas e melhores entradas! Diziam os pais aos filhos, as irmãs aos irmãos, os parentes e ami gos entre si, abraçando-se, beijando-se, saltando de con tentamento.

                Nas casas em que ha via bailes, o mesmo costume coroava a tradição, aos sons da música, ao brilho das serpentinas faiscantes, aos risos que corriam límpidos de uns lábios de rosa. Isso, porém, que prolongava a festa, mudava completamente no dia primeiro. Da manhã à tarde, as visitas faziam-se, desfilavam numerosos os portadores de presentes, sendo de preferência contemplados, nas freguesias, o vigário, os médicos e o fiscal.
                As bandas militares tocavam às portas e nos saguões das casas dos generais, dos ministros, das pessoas  gradas, dando as boas festas; compensando-lhes a atenção alguma cédula avultada ou peças de dinheiro em ouro.
                Enquanto nos armazéns de comestíveis o comércio encaixotava dúzias de garrafas de vinho, acondicionava queijos do reino, presuntos, caixas de figos e ameixas, diversos gêneros destinados aos fregueses do ano; enquanto do con vento da Ajuda, riquíssimas bandejas de prata, com a firma do indivíduo presenteado, arma das de doces, saíam umas após outras; era curioso de ver-se o que passava nas ruas, entretendo os abelhudos que comentavam dos sobrados.
                                                     
                Por toda a par te encontravam-se negros do ganho, de camisa de al go dão por fora da calça arregaçada, conduzindo em cestos um leitão de barriga para cima, amarrado de pés e mãos, com o focinho apertado com um barbante grosso, e guinchando, acercado de galinhas, patos e marrecos, com a cabeça pendente das beiradas do cesto e enfeitados  nas asas com lacinhos de fita. Para contrapeso, o ganhador não deixava de levar um galo ou um peru na mão livre, também enfeitado de fitas estreitas verdes e azuis. Ao presente era costume acompanhar um cartão de visita ou uma carta, concebi da mais ou menos nestes termos:

“...Boas saídas e melhores entradas lhe desejo. Incluso, encontrará vossa  mercê um leitãozinho, umas galinhas e um peru para mais um prato de seu jantar...”

                Aqui e além apareciam carregadores com caixões de vinho ou com caixas de açúcar, criados de libré precedendo escravos enviados com dádivas principescas, tais como colchas da Índia, aparelhos da China, baixelas de prata, cavalos de montaria, fazendo contraste com a crioula ou mulata de casa menos rica, que se guia com um pão-de-ló, um bolo-inglês, um pastelão numa salva modesta, coberta com uma gaze cor-de-rosa, com um tope de flores artificiais no centro, atravessado por um cartão ou um escrito.
                A isso não se limitavam os presentes. Pessoas ha via que ofertavam casas e palácios. O paço de S. Cristóvão foi um presente de Ano-Bom, feito pelo negociante Eli as Antônio Lopes a D. João VI, que o vendeu ao Estado, quando se retirou para Portugal.
                Considerava-se uma grande falta, um crime, a ausência dos parentes mais chega dos no jantar da família. Ninguém relevava essa falta, pois acreditava o povo que o que se fazia no primeiro do ano, se faria o ano inteiro. Daí se depreende que cada um queria estar neste dia com os seus, que todos vestiam roupa nova, que se brincava, tocava, cantava, a fim de que o conceito popular se realizasse em sua plenitude pressagiosa.
                Os escravos, que nunca foram estranhos às alegrias ou desgraças do nosso lar, ganhavam festas, tinham folga, divertiam- se  também.
                Por ocasião dos banquetes fidalgos ou dos jantares menos opulentos, ao calor dos brindes, ao alarido da canção:

Como canta o papagaio,
Como canta o periquito...

os convivas entusiasmados proferiam longos discursos, os rapazes recitavam colcheias, as moças tímidas e vergonhosas abaixavam os olhos às palavras “amor”, “meu bem”, refervendo a animação nas saúdes em honra aos mais velhos, à família re unida.
                As visitas oficiais e as de amizade faziam-se imprescindíveis. Havia cortejo no paço, os presepes pernoitavam iluminados, e – boas entra das – boas festas – eram moeda corrente de civilidade entre a população. (p.31-37)

Fonte: Moraes Filho, Melo (1843-1919). Festas e Tradições Populares do Brasil. Prefácio de Sílvio Romero. Desenhos de Flumen  Junius.  Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.


domingo, 22 de dezembro de 2013

Noite de Natal na cidade do Rio de Janeiro, no início do século XX: a visão de João do Rio

JOÃO DO RIO





                João do Rio (1881-1921) foi o pseudônimo adotado por João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto. Escreveu contos, livros, crônicas, peças de teatro sobre um tema recorrente: a cidade do Rio de Janeiro. Por conta de seus escritos podemos hoje ter uma ideia da vida carioca no início do século. Era um homem culto, viajado e gostava de vestir-se bem, era um “dândi”,  apreciava  viver intensamente a vida da cidade nos cafés, nos morros, ou nas ruas onde a vida existisse  e pudesse ser contada. Considerava-se um "flaneur”, isto é, um passeador sem compromisso, e de suas andanças, sempre riquíssimas em detalhes que os livros de história não contam, podemos sentir a cidade pulsando em cada palavra, acento, reticências... Suas impressões apresentam a dinâmica social na cidade que se transformava topográfica, arquitetônica e socialmente para representar uma “civilização” que não tinha.
                João do Rio trabalhou nos seguintes órgãos da imprensa: jornal Cidade do Rio (1899). Rio Jornal, A Pátria (1926) e a revista Atlântica (1915) além de colaborado também em periódicos de São Paulo e Portugal. Fundou e foi o primeiro diretor da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (1917). Segundo seu biógrafo, João Carlos Rodrigues, a obra de João do Rio pode ser considerada o «mais fértil material sobre a cidade do Rio de Janeiro nas duas primeiras décadas deste século, interessando igualmente a historiadores, antropólogos, urbanistas e folcloristas».
                Foi este autor, memorialista, que escolhi para apresentar o Natal no Rio de Janeiro. A crônica apresenta a visita do autor a quatro igrejas, os tipos que ali estão, definindo as classes sociais e interesses de cada um, na noite de Natal.

                “A missa do "galo" não começa precisamente à meia-noite e não tem a obrigação de acabar antes de uma da manhã. A missa só, sem galo, o divino sacrifício de que os casuístas espanhóis do século XIII faziam a anatomia – talvez tivesse em tempos remotos uma hora precisa, exata, confirmada pelo dogma. O galo, porém, varia e canta, ou adiantado ou com atraso. Ora, o chamar a missa do Natal de Cristo missa do galo é ainda um costume latino. Os romanos contavam as horas com uma certa poesia. Logo depois da media nocte, chamavam eles ao tempo gallicinium, hora em que o galo começa a cantar. A missa realizada, assim, após a media nocte, ficou sendo a missa do galo, e é ainda o velho e desusado gallicínium que se recorda quando os sacerdotes levantam a hóstia nos altares, e de capoeira em capoeira, sonoro e glorioso, se propaga o diálogo dos galos: Cristo nasceu! Onde? Em Belém...
               
IGREJA DE SANT'ANNA


                Eu estava exatamente defronte da igreja de Santana[1], dispondo de um automóvel possante. Era a mais que alegre hora da meia-noite que alguns temperamentos românticos ainda julgam sinistra. Aquele trecho da cidade tinha um aspecto festivo, um estranho aspecto de anormalidade. Das ruas laterais vindo em fila famílias da Cidade Nova, primeiro as crianças, depois as mocinhas, às vezes ladeadas de mancebos amáveis, depois as matronas agasalhadas em fichus; vinham marchando como quem vai para a ceifa, grossos machacares, de chapelão e casaco grosso; vinham gingando negrinhas de vestido gomado; "cabras" de calça bombacha, velhas pretas embrulhadas em xales. Era como uma série de procissões em que as irmandades se separavam segundo as classes. No adro, repleto, havia uma mistura de populaça em festa. Grupos de rapazes berravam graças, bondes paravam despejando gente, vendedores ambulantes apregoavam doces e comestíveis; todos os rostos abriam-se em fraterna alegria, e naquela sarabanda humana, naquele vozear estonteante, uma nota predominava – a do namoro. Os rapazes estavam ali para namorar, para aproveitar a ocasião. Os encontros tinham sido de antemão combinados. Quando um grupo familiar encontrava um rapaz o – oh! seu Antenor! Também por aqui! a resposta: oh! d. Belinha, então também veio! – soavam como quem diz: oh! não faltaste... Havia de resto pares de braço dado, meninas que murmuravam frases ao lado dos mocetões, sob o olhar protetor das mamães... A missa era um alegre pretexto e, se na classe burguesa o namoro tinha uma cor tão suave, nas outras irmandades o entusiasmo era maior. Entrei no templo atrás de um grupo de mocinhos entusiasmados, um dos quais teimava que havia de apertar, enquanto outro, com uma carta de alfinetes, asseverava estar disposto a pregar alguns pares. O grupo ria, a igreja estava repleta, quente, ardendo na nave de humanidade pouco crente, ardendo de doçura superior nas velas dos altares. Mocinhas irrequietas, rindo, abriam passagem; rapazes lamentavelmente espirituosos estabeleciam o arrocho, empurrando o corpo como quem vai dançar o cakewalk e pretalhões de pastinhas, erguendo alto os chapéus de palha, violentavam a massa com os cotovelos para chegar ao altar-mor. No ar parado um sino bateu. Houve uma interjeição prolongada da multidão, ia começar a missa. Era a missa do galo nos bairros...
                Parei na catedral. A enchente era tão colossal que havia gente até na rua.

                O templo ardia em luzes. De fora viam-se os sacerdotes de sobrepeliz dourada, a candelária luminosa, os santos, e toda a igreja vibrava das graves harmonias do órgão, realçadas por um coro abaritonado. A turba tinha outro aspecto. Senhoras de chapéu, cavalheiros sempre com esse amável ar conquistador que o homem se arroga nas festas públicas, de mistura com fuzileiros navais, marinheiros alcoolizados, caixeirinhos do comércio de roupa nova e com os olhos cheios de sono.
                Toda essa gente conseguia entrar e sair, fazer como um torvelinho à porta, onde duas senhoras vestidas de negro, esticando uma sacola, diziam maquinalmente: – para a cera! para a cera! Ninguém dava, ninguém se ralava. O sopro de excitação dos sentidos parecia recrudescido pelo sopro musical do órgão. Figuras que saíam da igreja vinham algumas congestas; as que entravam tinham uma violência aguçada no olhar. Na rua, como que farejando, sujeitos iam e vinham entre os grupos de malandros ébrios, de negros de capa no braço com um ar de copeiros de casa rica, de mulheres conversadeiras. Encontro um repórter de jornal.

– Oh! tu também! que pândega, filho! Mas espera...

Indagou com o olhar a rua, sorriu, apertou-me o braço, apressado:

– Até logo.

Dou de frente com um bando de gente de teatro. Uma das atrizes assegura:

– Estou com os braços doendo...

E logo depois, deixando a atriz, encontro o protetor.

– Viste-a por aí? Olha só aquela família com crianças. Só nesta terra! Eu não! Ceei com meus filhos: às dez horas tudo na cama, e às onze deixei de ser pai-de-família.

– Muito bem.

Era a missa do galo na cidade...Que tinha eu? Desgosto? Tristeza? Dor de cabeça? Sei lá! Despedi-me do ex-pai-de-família, tomei de novo o automóvel que logo deslizou pela Rua da Assembléia para cair numa vertiginosa carreira pela Avenida Central.

– Que é aquilo?

– É a missa do convento da Ajuda[2].

CONVENTO DA AJUDA (1907)


                Saltei. A rua estava negra de gente. Os focos elétricos da Avenida mais de sombra enchiam aquele canto – a porta tão triste onde a turba se acotovelava. Um sujeito valente pisou três ou quatro pés, barafustou. Acompanhei-o. Era a missa lá dentro imersa em tristeza infinda. Até os altares pareciam mais agourentos, até as imagens guardavam na face uma dor mais amarga. E a missa trespassava a alma, porque, enquanto o sacerdote ia e vinha no altar, por trás, na sombra, perpetuamente na sombra, morta, enterrada, perdida para o mundo, a voz das monjas varava o ar como o som de um cristal quebrado, retorcia-se no sacrifício do louvor do deus que nascera de um seio humano, espiralava como uma contorção histérica, soluçava cantando...

Ia mais adiante, mas na minha frente um latagão bocejou:

– Que cacetada!

– É verdade, vamo-nos, respondeu a companheira.

– Ainda temos tempo de ir a Copacabana.

Consultou o relógio e começou a sair, imprimindo tal movimento à massa de gente, que eu, com outros mais, de recuar tanto, me achei de novo na porta triste e humilde.

– Ó José, vamos a Copacabana?

– Anda daí.

Copacabana devia ser divertido. Tomei de novo o automóvel e disse ao chauffeur:

– Para Copacabana.

TRAMWAY (COLEÇÃO A. MORRISON)



                Naquele delicioso percurso da Avenida Beira-Mar, toda ensopada de luz elétrica, outros automóveis de toldo arriado, outros carros, outras conduções corriam na mesma direção. Homens espapaçados nas almofadas davam vivas, mulheres de grandes chapéus estralejavam risos, era uma estrepitosa e inédita corrida para Cítera. Quando, no fim da avenida, os automóveis seguiram pelas antigas ruas, cada encontro de bonde era uma catástrofe. Os tramways, apesar de comboiarem três carros, iam com gente até aos tejadilhos, e essa gente furiosa, numa fúria que lembrava bem a vertigem de Dionísios, berrava, apostrofava, atirava bengaladas num despejo de corpos e de conveniências. Entretanto, pelas mesmas ruas, a corrida aumentava e era uma disparada louca entre vociferações, sons de corneta, tren-ten-tens de bondes, estalar de chicote. Quando passamos o túnel num fracasso de metralha e demos nos campos de Copacabana, a velocidade foi vertiginosa, e era apenas vagamente que se divisavam, fugindo à sanha dos fon-fons, ao estrépito das rodas, a linha de fiéis da redondeza marginando o capinzal e, à esquerda, num diadema de estrelas, a iluminação da Igrejinha. Recostei-me. O automóvel saltava como um orango ébrio, no piso mau. De repente fez uma curva e entrou numa rua cheia de gente, de carros, de outros automóveis. Estávamos no grande sítio.

IGREJINHA DE COPACABANA, 1895 (FOTO MARC FERREZ)


– É aqui?

– É.

                Cerca de três mil pessoas – pessoas de todas as classes, desde a mais alta e a mais rica à mais pobre e à mais baixa, enchia aquele trecho, subia promontório acima. E o aspecto era edificante. Grupos de rapazes apostavam em altos berros subir à igreja pela rocha; mulheres em desvario galgavam a correr por outro lado, patinhando a lama viscosa. Todos os trajes, todas as cores se confundiam num amálgama formidável, todos os temperamentos, todas as taras, todos os excessos, todas as perversões se entrelaçavam. Quis notar o elemento predominante. Num trecho havia mais pretas com soldados. Adiante logo, o domínio era de gente de serviço braçal, um pouco mais longe a tropa se fazia de rapazelhos do comércio e, se dávamos um passo, outro grupo de mocinhas com senhores conquistadores se nos antolhava. Todo esse pessoal gritava.
                Logo na subida encontrei um meninote engolindo uns restos de vinho do Porto pelo gargalo da garrafa. Em meio do caminho um grupo do Clube dos Democráticos, de guarda-chuva branco e preto, tocava guitarras e assobios. De todos os lados partiam cantos de galo. Os cocoricós clássicos vinham finos, grossos, roufenhos, em falsete: – Cocoricó! Cocoricô!

–Já ouviste cantar o galo?

– Pois hoje não é a missa dele?

– Cocoricó! pega ele pra capar!

– Pega!

                A igrejinha[3] estava toda iluminada exteriormente à luz elétrica. Defronte de sua fachada lateral haviam armado um botequim. A turba arfava aí, presa entre a bodega e o templo. Quando eu passei, porém, a bodega fora devorada e bebida. Os caixeiros tinham trepado para os balcões no desejo de apreciar a cena. Fiz um violento esforço para entrar na igreja. À porta havia uma verdadeira luta e dentro ninguém se podia mexer. Divisei apenas como indicação humilde do dia – um presepe no lado esquerdo, um presepe com pano de fundo representando fielmente um trecho de Cascadura, e estava assim embebido, quando de repente estalou o rolo, o rolo rápido e habitual. Um sujeito apanhara uma bengalada, levantara o guarda-chuva, uma menina gritara: – nunca mais venho à missa! E no roldão da turba medrosa, de novo caí na ladeira, ouvindo os cocoricós, as chufas, as graças sórdidas:

– Pega pra capar! Cocoricó! Já ouviste o galo?

                No céu cor de chumbo, ameaçador de temporais, espocavam girândolas de foguetes. E todo aquele trecho, mais aquecido, mais feroz, mais cheio de gente redobrava de deboche, de frenesi pândego, de loucura, quebrando copos, cantando, assobiando, praguejando, ganindo.
Atirei-me dentro do automóvel, exausto. A máquina disparou outra vez, lutando agora contra a massa dos carros, dos automóveis, dos tramways [4]que chegavam.

– Onde é a Lapa do Desterro [5]?

– Quer ir lá? É uma igreja de gente pobre. E na Lapa.

– Pois vamos lá.

IGREJA DA LAPA DO DESTERRO


                O automóvel quebrou pela Rua da Lapa, parou defronte da velha igreja. Eram duas horas da manhã. Havia à porta a mesma matula de homens endomingados à espera da conquista, a mesma sarabanda de sirigaitas. Entrei. O tapete do templo, velho, esfarripado, tinha por cima, em alguns trechos, folhas de mangueira. No altar-mor, dos lados, entre panos azuis, ardiam dois bicos auer[6], e aquela luz azul como transfigurava o rebátulo, os acessórios, os ouros despolidos. A concorrência era menor, na nave, mulheres de xale formavam roda conversando. Andei por ali tristemente. Ao sair, porém, vi de joelhos um homem.
                De joelhos? Na missa do galo? Deus! Quem seria aquele pobre coitado? Aproximei-me. Era um rapaz – teria no máximo vinte anos. Ao lado o seu chapelão de coco repousava junto à grossa bengala. No seu corpo ajustava-se demais um grosso fato de inverno aldeão. De mãos postas, a face ingênua voltada para o altar, esse ser, numa noite báquica, era tão anormal, tão extraordinário, que eu cheguei bem perto, olhei bem, fui ao ponto de curvar-me para lhe espiar os olhos. O pobre sobressaltou-se.

– Meu senhor!

– Que está você a fazer aí?

– Que estava? Ah? Perdão... Estava a rezar, estava a pedir ao Menino Deus que dê saúdinha aos pais lá na terra e que me proteja.

– Donde é você?

– Saberá V. S a que do Douro, sim senhor.

                Falava de joelhos, a sorrir para mim; pobre alma ingênua e pura de aldeia, pobre alma que se ia putrefazer na grande cidade, único coração que adorara Deus entre as dez mil pessoas vistas por mim!
                Oh! Tive um ímpeto, o desejo de abraçá-lo, a sensação de quem, após uma longa desilusão, sente viva no abismo fundo a flor maravilhosa. Mas já em torno se fazia roda de ociosos, já um sujeito surgira com um riso de troça.

– Pois faz muito bem. Adeus.

– Adeus, meu senhor!

– E continuou – ó coisa incrível! – de joelhos, voltado para Deus, lembrando a sua aldeia, lembrando os paizinhos, pedindo o bem – enquanto pela cidade inteira as ceatas e as pândegas desencadeavam os ímpetos desaçaimados...”


FONTE: RIO, João. "Como se Ouve a Missa do Galo" crônica publicada em 1906.










[1] Em 1753 a região onde hoje existe o Campo de Santana passou a ser assim denominada porque, com o surgimento das primeiras chácaras, foi construída ali a igreja dedicada a Nossa Senhora de Santana.
[2] O antigo convento das religiosas de Nossa Senhora da Conceição, mais conhecido pelo nome de Convento da Ajuda, foi inaugurado num sábado, dia 30 de março de 1750, com grandes festejos populares, a que assistiu o governador Gomes Freire de Andrade, Conde de Bobadela. O enorme casarão ficava situado na Rua da Ajuda, uma das mais importantes do velho Rio de Janeiro, atualmente reduzida a um diminuto trecho com o nome de Rua Chile. Começava aquele logradouro na Rua São José, junto à Igreja do Parto (já demolida) e terminava no “mar de Santa Luzia”. Na esquina da Rua do Passeio, onde é hoje a “Cinelândia”, ficava o Convento. As noviças que ali se enclausuravam, por livre e espontânea vontade, tinham o título de “conversas”. Até aos últimos dias do primeiro reinado, por ocasião das festas do Natal e Reis, acorria o povo à Rua da Ajuda para ouvir o seu cântico religioso. Com o correr dos anos, porém, tornando-se o local impróprio para uma casa claustral, cedeu o Convento às exigências urbanísticas da cidade, sendo transferido para Vila Isabel e demolido.
[3] Onde hoje temos o Forte de Copacabana ficava a Igrejinha de Copacabana. Foi demolida em 1918 para dar lugar ao forte de Copacabana.  A imagem de Nossa Senhora de Copacabana, que deu nome ao bairro, foi levada pela família Tefé para a cidade de Corrêas, em Petrópolis. Não se sabe ao certo quando a Igrejinha de Copacabana foi fundada e construída. Existem documentos mostrando que, em 1732,  o bispo frei Antônio de Guadalupe, pedia consertos no telhado da igreja, paredes, etc..
[4] Em meados de 1872 surge a palavra bonde, originada pelo fato que naquela época as passagens custavam 200 réis, e não existiam moedas de prata cunhadas deste valor em circulação. Diante disso, a empresa emitiu pequenos cupons ou bilhetes em grupo de cinco, pelo preço de um mil réis, devido à grande quantidade de cédulas deste valor em circulação. Os bilhetes, ricamente ilustrados impressos nos EUA, eram conhecidos como Bonds, (bônus, ação). A própria empresa denominava bond tais cupons, por entender que representava o compromisso assumido de, em troca, transportar o portador em de seus veículos tramways. Com o tempo o povo passou a denominar no próprio sistema carril de ferro urbano, o tramway, como bond, designação que mais tarde se consagrou com o neologismo “bonde”.
[5] Em 1751 o local era apenas um pequeno seminário criado pelo Padre Ângelo Siqueira Ribeiro do Prado em louvor a N. S. da Lapa. A igreja veio a ser construída pelos Carmelitas em 1810, junto ao Convento que foi destruído por um incêndio. Ocorreram muitas reformas, e o prédio que hoje se vê é bem mais recente, contudo guarda algumas relíquias valiosas, como telas cuja autoria é atribuída a João Silva. São atribuídas a Mestre Valentim as imagens dos Apóstolos, chapeadas em prata que constam do acervo da igreja.. A igreja tem apenas uma torre tem explicação. Antigamente as igrejas só eram consideradas totalmente construídas quando a segunda torre ficava pronta. A partir daí é que se começava a pagar impostos ao governo. Por isso é que algumas igrejas têm só uma torre, oficialmente não foram terminadas e assim não pagavam impostos.
[6] Bicos auer eram bicos para iluminação a gás. 
     

domingo, 15 de dezembro de 2013

PATRIMÔNIO QUE O RIO TEM E NÃO CONHECE


Você sabe qual a capela mais antiga  do Rio de Janeiro? Não, não cite as capelas conhecidas. A mais antiga capela da cidade é a consagrada à Nossa Senhora da Cabeça.

Sabe-se que a história da capela está relacionada a Martim de Sá[1], governador da capitania do Rio de Janeiro por duas vezes no início do século XVII - a primeira entre 1602 e 1608, e novamente entre 1623 e 1632. De acordo com os historiadores que pesquisaram o tema a capela foi construída por ordem do próprio Martim de Sá, encarregado da recuperação do Engenho D´El Rey, onde  ficava a capela, no seu primeiro governo. Neste período, no entanto, o engenho já teria sido vendido, o que ocorreu em 1579. O que se acredita é que o proprietário do engenho tenha mandado erguê-la, dedicando-a a Nossa Senhora da Cabeça, em homenagem ao governador recém-nomeado, Martim de Sá, devoto daquela santa. Martim de Sá, que se casara em Cádiz com Dona Maria de Mendonça y Benevides, filha do governador daquela cidade, trouxe de lá duas imagens da santa espanhola, de quem se tornara fervoroso devoto.


A primeira imagem conhecida, desta capelinha no Rio de Janeiro, é de autoria do francês Charles Clarac, e foi pintada em 1816. No título o autor faz menção a laranjais e a um aloés em flor. A capela tinha ainda uma sineira defronte à varanda e um corpo posterior em meia água, ambos já demolidos.

Segundo a devoção, a aparição de Nossa Senhora da Cabeça ocorreu em 1227, na cidade de Andújar, alto vale do rio Guadalquivir, na região da Andaluzia, Espanha, a um pastor chamado João Rivas, em um monte denominado Cabeza. Ela é representada trazendo à mão uma cabeça, e a ela se dedicam inúmeros ex-votos de cabeças de cera.  O primeiro voto, segundo a tradição, foi ofertado por um condenado à morte por decapitação que, após solicitar a intercessão da santa, foi salvo no último minuto por um indulto real.

O Plano da Lagoa Rodrigo de Freitas [2]do Ten. Cel. Reis e Gama, de 1809/1811 é a primeira imagem que se tem da região: florestas e plantações de cana de açúcar que ocupavam as encostas acima das margens da lagoa, e os caminhos e edificações então existentes. O mapa mostra que a grande fazenda estava dividida em 3 sítios, 55 chácaras e 5 casas, indicando quem seriam seus ocupantes. Uma legenda assinala a posição da casa do Padre Manuel Gomes, cura da paróquia de Nossa Senhora da Cabeça. 

Interior da capela


Segundo pesquisa de Carlos Eduardo Barata, o registro fundiário identifica que, em 1827, a Chácara da Cabeça, sítio 56, era ocupada pelo vigário da Freguesia da Lagoa, Manuel Gomes Souto. Em 1830 o vigário renunciou ao curato, mas permaneceu residindo na chácara pelo menos até 1838, conforme o registro do pagamento de foros. Em 1848 os assentamentos passam a referir-se a Maurício Gomes da Silva e de Pedro Gomes de Alcântara, apontados como herdeiros do Padre Manuel Gomes Souto.

O registro dos foros pagos à Fazenda Nacional revela que, em 1850, a Chácara da Cabeça havia sido desmembrada em pelo menos três chácaras menores, numeradas como 7, 7 A e 7 B, sendo que a principal delas havia sido vendida a José Fernandes de Castro18. A partir daí iniciou-se um processo de sucessivas subdivisões das propriedades da região, que daria origem ao atual bairro do Jardim Botânico e seus logradouros.

Em 1877, segundo o registro fundiário, a chácara pertencia a Luis Pereira Ferreira Faro – filho e homônimo do proprietário original, nascido em 1856 e batizado na capela de Nossa Senhora da Cabeça em abril de 1857.  Luis Pereira Ferreira Faro estudou medicina na Universidade de Pisa, na Itália, retornando para estabelecer clínica no Rio de Janeiro. Casou-se com Isabel Tosta da Silva Nunes, razão pela qual a chácara da Cabeça também já foi designada como Chácara do Tosta 22. O primo de Luís, José Pereira de Faro, assumiu a administração das fazendas de café e, com elas, o título de terceiro Barão do Rio Bonito. A Chácara da Cabeça, incluindo a capelinha, era de propriedade de Custódio da Costa Braga e sua mulher em maio de 1902, quando foi adquirida pelo Ministério da Viação e Obras Públicas, com o objetivo de “conservação e pureza das águas” da represa do Rio Cabeça, captadas junto às encostas da Serra da Carioca [3]. Naquele ano, o manancial do Rio da Cabeça trazia em média 4,3 mil metros cúbicos diários de água para alimentar as redes de abastecimento público no bairro do Jardim Botânico, representando 2,5% do suprimento total da cidade. E aí? Você acertou?


Fonte: PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Secretaria Municipal de Urbanismo. Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos. Coleção Estudos Cariocas. Capela de Nossa da Senhora da Cabeça: pequena joia do patrimônio cultural do Rio de Janeiro. Agosto de 2004.



[1] Martim de Sá (1575 – 1632) foi o primeiro carioca a governar a cidade onde nasceu e viria a falecer. Esteve envolvido em campanhas militares contra índios, holandeses e franceses no território dos futuros estados do Rio, São Paulo, Minas e Espírito Santo. Como governador do Rio construiu fortes e reduziu os índios carijós em torno dos padres jesuítas na aldeia de São Francisco Xavier (com o que começou a povoação do atual bairro da Tijuca). Por sua ordem foi iniciada a construção do aqueduto da Carioca, somente concluída no século seguinte. Foi também provedor da Santa Casa de Misericórdia. Seu filho, Salvador Corrêa de Sá e Benevides, também governou a cidade em três ocasiões ao longo do século XVII, como já o haviam feito outros membros do mesmo clã - Salvador Corrêa de Sá e antes dele Mem de Sá, no século anterior. Por mais de 300 anos essa família, cujos primogênitos viriam a receber o título de Viscondes de Asseca, manteria posição de força no governo da cidade e da capitania. Apesar de sua importância para a história da cidade e do país, Martim de Sá nunca foi homenageado com um único logradouro, escola pública ou outro equipamento urbano relevante no Rio de Janeiro (Instituto Pereira Passos, Diretoria de Informações Geográficas, agosto/2004,p.5).
[2] Plano da Lagoa de Rodrigo de Freitas. Elevado pelo Tenente Coronel Carlos José de Reis e Gama e pelo Capitam Jacques Auguste Coni e sendo desenhada pelo mesmo Ten. Coronel em janeiro de 1809. Nanquim e aquarela 98,2 x 69,5 cm. Cópias desenhadas e coloridas a mão em 1855 e 1870. Arquivos do Serviço Geográfico do Exército, Rio de Janeiro.
[3] Escritura de 12 de maio de 1902, registrada no Tabelião Evaristo. Ver Ministério de Viação e Obras Públicas, Relatório da Comissão de Patrimônio, vol II. Empreza Brasil Editora, Rio de Janeiro, 1922

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

CHOVE CHUVA, CHOVE SEM PARAR...





O registro de chuvas e inundações na cidade do Rio de Janeiro não é recente. Consta da História do Rio desde sua fundação. No século XVI Jean de Lèry já descrevia a “estação das chuvas” na cidade. A antiga rua Primeiro de Março já foi inundada mais de uma vez. Dizem os estudiosos que a chuva  intensa permitiu a invisibilidades dos navios de Duguay Trouin, em 1711,Chuva e neblina permitiram até que o corsário francês Duguay Trouin chegasse às portas da cidade em 1711, quase sem ser notado, e pudesse exigir vultuoso resgate para “libertar” a cidade. Só para ter ideia da esquadra do corsário francês, que não foi avistada à tempo de propiciar a defesa da cidade, os historiadores contam sete enormes navios de 54 a 74 canhões, seis fragatas de 22 a 44 canhões, uma galeota, duas embarcações de passageiros,  armados em galeotas e um barco de carga. No final do século XVIII a Rio de Janeiro, após chuva ininterrupta de três dias de chuva forte quase leva ao colapso a população que se refugiou em  igrejas, “rogando aos céus pelo fim do flagelo”.


Rua 1º de Março, início século XX.

Em 1811, pós uma semana de chuvas ininterruptas, houve desabamento no antigo Morro do Castelo com perda de muitas vidas, o que levou D. João VI a abrir um inquérito sobre o terrível acidente. Ao pesquisar sobre a compra de terreno para erguer, na Rua Mariz e Barros, a sede da Escola Normal do Distrito Federal, em 1927, li sobre as inúmeras críticas da imprensa ao Prefeito por escolher um local “de alagamento constante” para erguer o educandário.

Avenida Brasil, ontem.

Lapa, ontem.

Bangu, ontem.
Ontem, tivemos um desses dias, que a História da cidade já conhece e me vem à mente que, desde 1565, em 2013, ainda não resolvemos o problema. Como historiadora conheço a “indústria da seca” que mantém privilégios e cada vez mais, alija brasileiros de  sua plena cidadania, sem água, ou com água contaminada, como foi descoberto pela imprensa. Pens: será que no Rio temos a “indústria da chuva”? A quem interessa perpetuar por mais de 440 anos esta situação? Mistério!!!!!!!!!!!

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

TIPOS HUMANOS DO RIO ANTIGO





O HOMEM DO REALEJO E SEU MACAQUINHO

  Lendo Luis Edmundo (1938), um memorialista dos primeiros anos do século XX, quando a cidade do Rio de Janeiro se transformava, sob o pretexto de “civilizar-se”, a Prefeitura do Distrito Federal, através de decretos, estabelecia normas com o intuito de “educar” o povo, assim se atacou e combateu muitos dos costumes populares como o de cuspir no chão, nos bondes e nas lojas; se proibiu  a venda de ambulantes e o comércio de leite que levava a vaca de porta em porta e a criação de porcos nos limites urbanos; se coibiu a exposição da carne na porta dos açougues;  foi vetada a circulação de cães vadios; tolheu-se  o descuido dos proprietários com a necessária pintura das fachadas das casas e comércios; vedou-se  o entrudo e os “costumes bárbaros” e  incultos” (NEEDELL,1993).
            A cidade do Rio de Janeiro, no início do século, era tomada pelo comércio ambulante, com aguadeiros e mascates que vagavam pelos logradouros com malas repletas de quinquilharias e gritos que caracterizavam o que estava sendo vendido (PARGA,1996). Não havia como não achar a cidade feia e longe da modernidade que se pretendia, pois este trabalho era realizado em grande parte pelos negros, sendo um ofício desprezados pelos chamados brasileiros mais pobres.  Achava-se que trabalhadores braçais não eram bem vistos, eram pouco ou nada valorizados, ainda que fossem ocupantes de ofícios indispensáveis numa sociedade que crescia e não tinha transportes suficientes, nem baratos, para levar quem queria comprar a quem pretendia vender.
            Tais medidas tiraram da cidade tipos humanos característicos que grandes nomes da caricatura do início do século retrataram. Cada um deles representava, também uma forma de ganho, pelo trabalho braçal, cansativo, de expor a mercadoria, tentar vendê-la com lucro e disso tirar o sustento. As mulheres pobres, também trabalhadoras, tinham suas atividades pautadas nos serviços que já faziam em casa nos cuidados do lar. Esses tipos se foram, na medida em que o capitalismo se consolidava e que novos empregos surgiam, nas muitas fábricas instaladas no Rio de Janeiro.
            Dentre a camada popular que se ocupava desses serviços informais que foram desaparecendo, os imigrantes (grande leva de portugueses e espanhóis, mas de várias nacionalidades), os negros livres com a abolição (que lhes deixou sem trabalho, sem estudo e sem qualquer oportunidade), os brancos pobres dos muitos “brasis” que acorriam à capital  em busca de estudos e trabalho. Destes tipos se forjou o trabalhador carioca que adaptando-se, até hoje, consegue sobreviver à parcos salários, moradias pouco dignas e estudos insuficientes. Mudamos de século, mas infelizmente, ainda que com outros tipos humanos, sofremos pelos mesmos males.


AMOLADOR (DESENHO ARMANDO PACHECO)


CANTOR DE MODINHAS (DESENHO J. CARLOS)
CAIXEIRO DE VENDA (DESENHO A. PACHECO)


DOCEIRO DE CAIXA

LAVADEIRA

MORADOR DE CORTIÇO (DESENHO J. CARLOS)

PEIXEIRO

LAVADEIRA DE CORTIÇO (DESENHO DE RAUL)