Tenho pesquisado
bastante sobre o Rio de Janeiro dos primeiros anos do século XX para tentar
entender a sociedade em que Esther Pedreira de Mello, cuja vida investigo,
viveu, foi normalista da Escola Normal do Distrito Federal; inspetora-escolar,
professora de Pedagogia e diretora da Escola Normal; Ministra da Fraternidade
da Ordem Secular do Convento de Santo Antonio; fundadora e diretora da Escola
Secundária Feminina; redatora do periódico O Estudo; presidente e acionista
majoritária da Sociedade Anônima A Escola Primária; além de outras atividades
laboriais e solidárias. Por conta desta mulher complexa estudo mais o Rio de Janeiro e,
lendo, descobri coisas interessantes que vou, se me permitem, compartilhando.
Claro, transcrevo partes de minha tese, por isso desculpem se não coloquei, na
transcrição, todas as fontes nas referências, mas se houver interesse, procuro
no meu texto.
A febre amarela epidêmica
As ultimas noticias do Rio de Janeiro,
datadas de 29 de março, anunciam que naquella época a intensidade da febre
amarella tinha apenas diminuído no Rio de Janeiro, contando-se ainda na cidade
mais de 200 falecimentos por dia. (Gazette Medicále, de 6 de julho de 1850,
apud REGO, 1851, p. 149)
Após a
epidemia de febre amarela de 1850, com excessivo número de mortos, dos 166.000
habitantes, a doença atingiu 90.658, causando 4.160 mortes (RODRIGUES, 1995,
p.29). [1],
modificaram-se hábitos nos enterramentos na cidade do Rio de Janeiro, através
de normas profiláticas e sociais.
Não mais foi
permitido, por exemplo, velar o morto nas igrejas. O velamento passou a ser,
então, dividido entre a igreja, ainda que sob proibição, e o lar. Para de todo
retirar da igreja o velamento, a Prefeitura mandou que a Ordem Terceira de São
Francisco de Paula construísse, no Cemitério do Catumbi, uma capela específica
que foi, depois, também instituída nos dois outros cemitérios da cidade.
(ibidem, p.215).
As mudanças ocorridas no século
XIX, por conta da epidemia de 1850, na cidade do Rio de Janeiro, provocaram
outras alterações, e essas modificações, outras, sob a mesma base profilática. De
tal modo que, em um curto período, devido à epidemia, grandes alterações foram
sentidas nas tradições culturais da sociedade carioca inclusive o do banimento
ou permanência de algumas profissões.
Dos
trabalhadores ligados à morte, que ainda existem, ainda que não no meio da rua,
João do Rio (2008) comenta:
— Que
espécie de gente é essa?
— Oh!
não conhece? São os urubus!
—
Urubus?
— Sim,
os corvos... É o nome pelo qual são
conhecidos aqui agenciadores de coroas e fazendas para luto. Não é muito
numerosa a classe, mas que faro, que atividade!
— Os
agenciadores de coroas levantam-se de madrugada e compram todos os jornais para
ver quais os homens importantes falecidos na véspera. Defunto pobre não precisa
de luxo, e coroa é luxo. Logo que tomam as notas disparam para a casa do morto
e propõem adiantar o que for necessário para o enterro, com a condição de se
lhes comprarem as coroas. Algumas casas têm mesmo nos cartões os seguintes
dizeres — encarregam-se de tratar de enterros sem cobrar comissão de espécie
alguma. E os títulos dessas casas davam para um tratado de psicologia
recreativa. Há os poéticos os delicados, os floridos, os babosos, os fúnebres —
“Tributo da Saudade”, “Coroa de Violetas”, “Flor de Lis”, “Bogari”, “A
Jardineira”, “Coroa de Rosas”...
— Mas...e
estes homens aqui?
— Estes
homens são os urubus de Santa Luzia[2]
[...] (p.27)
Estes ofícios de rua, na sociedade que crescia e se
redimensionava, mesmo tendo começado com negros já alcançavam os imigrantes, o
que contrapunha as expectativas de ter um empregado pobre, mas branco e
europeu. João do Rio (2008) cita, na cidade do Rio de Janeiro, os seguintes
ofícios exercidos na rua, uma parte deles, extintos ou enclausurados em
cubículos, por medidas profiláticas oriundas da grande epidemia de 1850: ambulantes,
caixeiros, os pintores[3]
marcadores[4],
“camelots de livros”[5],
músicos ambulantes[6] e
outros tipos urbanos característicos desta cidade no início do século XX.
Aos poucos, os chamados “civilizados”, os
imigrantes, disputavam espaços de trabalho braçal com negros de tal forma que o
que era visto como “decadência social” vai transmutando-se como aceitável
(SILVA, 2009).
As medidas profiláticas do século XIX
atravessaram aquele século e persistiram nos primeiros anos do século XX, atacando
e combatendo muitos dos costumes populares como o de cuspir no chão, nos bondes
e nas lojas; proibindo a venda de
ambulantes e o comércio de leite que levava a vaca de porta em porta e a
criação de porcos nos limites urbanos; coibindo a exposição da carne na porta
dos açougues; vetando a circulação de cães vadios; tolhendo o descuido dos
proprietários com a necessária pintura das fachadas das casas e comércios; vedando
o entrudo e os “costumes bárbaros” e “incultos”.(NEEDELL,1993)
O
mapa dos primeiros anos do século XX deixa visível o grande número de ruas
próximas ao porto ainda em estágio de poucos aterramentos destas áreas, mas
apresenta, também, o crescimento da cidade nos traçados de ruas além do centro
comercial. As ruas antes ruelas, estreitas e mal cheirosas, se alargam, passam
por limpeza, da companhia de limpeza encarregada do serviço.
Também
faziam parte destas causas higiênico-profiláticas as modernidades importadas
durante e após a primeira grande guerra mundial, que direta ou indiretamente,
alteraram topográfica e culturalmente a cidade do Rio de Janeiro, como o bonde
movido a eletricidade que vai, por entre a linha elétrica, cortando a cidade e
ligando os bairros.. Explica o historiador Hobsbawn (1998) que a história dos
países nos séculos XIX e XX é a história
da tentativa de imitar o “mundo civilizado”.
Um aspecto interessante é que os
banhos de mar, profiláticos desde que D. João VI deles se valeu, voltam à moda
e levam para os bairros litorâneos uma parcela da população que, saída das
chácaras, prefere morar onde o ar é mais limpo. Naquele momento a especulação
imobiliária se faz sentir mais forte, o que, desde a derrubada do Cabeça de
Porco (1893), se fazia presente no centro, encaminha-se para as zona litorânea.
Assim, só quem tinha dinheiro podia ali residir.
Como a cidade do Rio de Janeiro era o espelho
e a vitrine de uma nação que desejava civilizar-se em moldes europeus, desde o
Império (movimento realçado na república que desejava como novo regime
situar-se moderna e industrializada) urgia que providências profiláticas fossem
tomadas com prioridade e rigor para mudar o quadro deixado pela epidemia no Rio
de Janeiro.
Precisava-se
arejar a cidade, abrindo largas avenidas como Hausmann[7]
fizera em Paris, pois que a malária, a febre amarela e os demais males dos
trópicos, matavam e desqualificavam a vitrine de modernidade que se pretendia
implantar; havia urgência também em providenciar o embelezamento através do desaparecimento
rápido dos cortiços que assomavam ao porto e enfeiavam o Rio de Janeiro, com
suas construções e sua gente pobre, dentro e fora das moradias, à chegada dos
visitantes.
Rodrigues
Alves transformou, pautando como meta de seu governo, apoiado pelo assédio
ininterrupto da imprensa, a urbanização da capital do país, a cidade do Rio de
Janeiro. Ao Engenheiro Paulo de Frontin o presidente encarregou de abrir, aos
moldes haussmanianos, a Avenida Central que atravessaria a Cidade Velha até a
parte norte das docas; o Engenheiro Lauro Frederico Muller ficou encarregado de
aterrar, modernizar e costear a avenida que comunicava o centro e os bairros
operários e industriais da zona norte, depois chamada de Rodrigues Alves. Estas
medidas também conferiam a quem delas participasse prestigiar (-se) e aliar à
sua a imagem de moderno, civilizado e higienista. A todos interessava ser visto
como moderno, como preocupado com a higiene, como promotor e incentivador da
civilização na cidade do Rio de Janeiro.
Grande parte
da cidade velha foi posta abaixo: ruas foram alargadas, foram alterados os
traçados de outras ruas, facilitou-se a comunicação com a zona sul e com a zona
norte. Pavimentaram-se ruas, asfaltaram-se estradas, abriu-se um túnel no Leme,
enfim, remodelou-se a cidade (NEEDELL, 1993).
A medicina,
com as novas práticas de enterramento adotadas em 1850, passa a ter
visibilidade e “a ser encarada como apoio científico indispensável ao exercício
do poder do Estado” (RODRIGUES, 1995, p.56), deslocando-a da cura de doenças
para a proteção à saúde.
O Dr. Rego
(1851) escreveu seu livro sobre a grande epidemia apresentando não só os
medicamentos utilizados no tratamento, as hipóteses de contágio, estatísticas
de atendimento médico em diferentes espaços públicos e privados. Sua obra é,
além de uma referência história, nas palavras dele, “de utilidade e interesse
[à] sciencia, e à historia medica do paiz [...] para o proceder futuro da
autoridade publica” (p.1).
Referências
REGO, Jose Pereira. História e
descrição da febre amarela epidémica que grassou no Rio de Janeiro em 1850. Rio
de Janeiro: Typ. Francisco de Paula Brito, 1851. In: REGO, Jose Pereira.
História e descrição da febre amarela epidémica que grassou no Rio de Janeiro
em 1850. Coleção biblioteca Carioca.
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1990
RIO, João. A
Alma encantadora das ruas. Raul Antelo (org). São Paulo: Companhia das Letras,
2008.
RODRIGUES,
Cláudia. Lugares dos Mortos na cidade dos
vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Coleção
Biblioteca Carioca, vol.43Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de
Janeiro/ Secretaria Municipal de Cultura/Departamento Geral de Documentação e
Informação Cultural/Divisão de Editoração, 1997
[1] Ver também REGO, José Pereira. História e
descrição da febre amarela epidémica que grassou no Rio de Janeiro em 1850. Rio
de Janeiro: Typ. Francisco de Paula Brito, 185 1. In: REGO, Jose Pereira.
História e descrição da febre amarela epidémica que grassou no Rio de Janeiro
em 1850. Coleção biblioteca Carioca.
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1990
[2] O
autor faz referência a Rua de Santa Luzia ao tempo em que a igreja era
costeira.
[3]
Pintores de estabelecimentos comerciais, pintores de tabuletas comerciais. Os
pintores de tabuletas resignam-se. “Eles, os escritores desse grande livro
colorido da cidade, têm a paciência lendária dos iluministas medievos, eles
fazem parte da grande massa para que o Reclamo foi criado — são pobres.”
[4]Tatuadores.
“Há três casos de tatuagem no Rio,
completamente diversos na sua significação moral: os
negros, os turcos com o fundo religioso e o bando das
meretrizes, dos rufiões e dos humildes, que se marcam por crime ou por
ociosidades.” (RIO,2008, p.18)
[5]
Vendedores de livros populares como a Bíblia, católica e espírita, e outros, de
autores desconhecidos, sobre o
testamento dos bichos, sortilégios, etc. que não eram vendidos nas livrarias
(RIO, 2008, pp.29-33)
[6] “Esta
cidade é essencialmente musica, era impossível passar sem os músicos ambulantes.”
(RIO, 2008, p.42)
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