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quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

ESCREVER NO FEMININO



Heloisa Helena Meirelles dos Santos[1]
UERJ
helohmei@gmail.com


Resumo
Este artigo investiga algumas revistas femininas, do final do oitocentos e início do século passado, apresentando suas características: que sua circulação não atingia todas as mulheres e que tais publicações  eram em sua maioria, editoradas e escritas por homens, algumas com a colaboração eventual de mulheres; que eram voltadas aos poemas e romances apropriados às mulheres, que ali eram lidos e comentados;  que estes periódicos buscavam ser uma “amiga” da mulher estabelecendo uma cumplicidade capaz de conhecer seus problemas e resolver suas necessidades. Estas publicações usavam o vestuário, a casa e formas de agradar o marido como pautas de interesse feminino. Poucas publicações, escritas por mulheres, por vezes iam de encontro aos movimentos emancipatórios de gênero, no que se pretendia para mulheres urbanas e com poder aquisitivo. O artigo pretende contribuir para a historiografia no que tange a escritura feminina como estratégia emancipatória feminina da mulher urbana publicizada pelas revistas.

Palavras-chave: Revistas femininas; estratégias emancipatórias femininas; escritura para mulheres.


Escritura invisível





Imagem 1. Mulheres
Fonte:  Novo Correio das Modas, 1854.


Ainda que Chartier (1995, p.38) advirta que a escrita não é sexuada, distingue características para a escrita feminina: recurso frequente ao pseudônimo ou anonimato para não revelar a identidade; distância em relação à edição da obra e certa cumplicidade ao dirigir-se a um público restrito. Escrever ou historiar no feminino sempre foi uma atividade de mulheres, mesmo que estas possam estar defendendo posições masculinas, ou, ainda que homens façam desta a sua tarefa, numa tentativa de apresentar socialmente a mulher sob o olhar masculino. Deste modo, me coloco a escrever sobre o feminino de acordo com Walter Benjamin (1994), daquele sujeito que narra e retira de sua experiência o que conta, incorporando ao narrado o que soube, o que ouviu, o que entendeu e resignificou.
Lightman (1993) diz que os homens, ainda que escrevam a história, não a contam como querem, pois que o feminismo, aqui entendido como ação política das mulheres, sempre foi uma forma impactante de reivindicações e estremecimento no tecido social que, aparecendo ou não nos discursos, mostra-se nos atos do cotidiano, no pensamento e na linguagem.
Lygia Fagundes Telles (2006, p.670) ao comentar uma visita do naturalista Saint-Hilaire, a um fazendeiro, no início do oitocentos, afirma que a mulher e filha do visitado não apareceram ao visitante, mostrando que a mulher, mesmo escondida e guardada, estava sempre  sob suspeita, que era tida por  Ânfora do Mal e Porta do Diabo (ibidem, p. 671)
Assim, parece crível encarar a escrita feminina como invisível, oculta e, dependendo do período e do lugar onde esta escritura circulava, também, “pecaminosa”.
Para um historiador há a preocupação de salvar o passado no presente, de modo que ele não desapareça, ou seja, esquecido, mas, também, de transformar o presente pela possibilidade de, conhecendo o passado, reconhecê-lo ou reinterpretá-lo, nas linhas do tempo atual. Por que o interesse da História para revelar a luta da mulher para a emancipação do gênero[2] feminino a partir das escrituras deixadas por elas na imprensa?
Desde os anos 1990 do século XX, provavelmente pelas muitas mudanças ocorridas no mundo em todos os sentidos (das tecnológicas às ideológicas), houve preocupação de expor a história das mulheres. Não só a história das mulheres que, individualmente, foram vanguarda de seu tempo e, por isso, foram, provavelmente, selecionadas para compor o acervo do estudo biográfico de gênero. Mas as mulheres comuns. Aquelas que, caso sejam citadas, o são sem maiores detalhes de sua condição social, de sua filiação a uma causa. As mulheres que a história anterior aos Analles[3] não nomeava porque, se existiam de fato, não existiam para a História.

A maneira pela qual esta nova história iria, por sua vez, incluir a experiência das mulheres e dela dar conta dependia da medida na qual o gênero podia ser desenvolvido como categoria de análise. (SCOTT, 1995,p.73)

Meyer (2009) ao explicar o fim da memória para, deste modo, analisar as novas formas de historiar que, sem deixar de ser “rigorosa e científica”, tentasse, pelo menos, ser mais acessível e, por que não, também mais livre (p.32), a partir dos anos 1970, diz que esta não seria uma nova forma de

buscar a verdade, mas de atender, escutar e observar as diferentes verdades que provocavam o anseio de compreender a nós mesmos, em nosso duplo desempenho como historiadores e protagonistas (ibidem).

Para Albuquerque Jr (2007) os historiadores deixam que medos, e até recalques, os impeçam de admitir a existência de uma dimensão literária, em seu ofício (p. 143) mostrando que tal característica, se manifesta apenas no estilo escolhido por eles ao discorrer, ou narrar, sobre seu objeto.  Ainda assim, com tais dificuldades, com ou sem a presença da literatura, a crítica feminista vem aparecendo, desde antes do século XIX, nos discursos, na escrita e nos debates, provocando preocupação na sociedade ocidental elitista, branca e masculina, com as possíveis distorções sociais que poderiam daí resultar.
O passado pressiona para ser visto e revisto, exige novas explicações e nos impõe visitar os arquivos e passar a História a limpo. (RAGO, 1996, p.15)

As revistas ditas femininas são, pois, uma fonte valiosa para a busca de indícios sobre o papel da mulher e sua emancipação. Estes periódicos, que tiveram por público-alvo as mulheres urbanas, nem sempre foram escritos por mulheres, e, quando o foram, adequaram-se ao que se desejava fosse lido pelas mulheres: cuidados com o lar, com os filhos, a moda europeia, conselhos culinarísticos, anedotas de salão e bastante ilustração, seja por desenhos, por fotos, por charges que eram explicitadas em poucas palavras para aquelas a quem o acesso à educação elementar sequer chegara. A importância da ilustração era fazer entender o texto, independente de poder ser lido, porque à mulher não era dado a oportunidade de educar-se além daquilo que a família, a casa e o marido necessitavam.
As demais publicações de mulheres existiram, no século XIX, a partir de iniciativas individuais bancadas por elas próprias, ou com rendas de pais, ou maridos. Estas publicações, em sua maioria, eram literárias, apresentando ao público leitor qualidades que a família e amigos conheciam, e eram expostas, nos entretenimentos da casa.
Nísia Floresta, por exemplo, em iniciativa individual, publicou, em 1853, o Opúsculo Humanitário onde clama ao liberalismo brasileiro, o que era incomum à mulher, fugindo a dotes literários a serem publicizados:

Onde está a doação mais importante dessa civilização, desse liberalismo? Em todos os tempos, e em todas as nações do mundo, a educação da mulher foi sempre a das mais salientes características da civilização dos povos. (p.3)

Não era um brado feminista[4], mas um brado feminino, de uma mulher culta, que embora tenha lutado pela abolição dos escravos e pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, estava, provavelmente, fortalecida em suas convicções pela leitura e 'tradução livre' da obra Vindication of the Rights of Woman, da escritora inglesa Mary Wollstonecraft que a publicara nos Estados Unidos (VASCONCELLOS e SAVELLI, 2006, p.89). Nísia era uma mulher incomum: viajada e erudita, que fugiu do estereótipo das mulheres de sua época escrevendo quinze livros, que provavelmente editorava, que englobavam direitos femininos, abolicionismo, cuidados maternais, narrativas de viagem e pensamentos. Ainda que numa narrativa feminina, defendeu questões emancipatórias da mulher, indo, além disso, ao externar sua posição política quanto à abolição da escravatura.
Neste aspecto, as ações feministas sem uma associação feminista que as representasse quanto aos ideais de igualdade de gêneros, no início do século XIX, faziam calar ou desqualificar, na época, as poucas iniciativas individuais. Para atingir este objetivo foi criado um imaginário social, não panfletário, o que produziu, de certo, embates, mas um imaginário voltado ao hilariante e à histórica “incapacidade física e mental da mulher”. Essa “incapacidade” surge pelo tratamento tradicionalmente dado ao sexo feminino, não pela verdade da assertiva, o que até hoje, três séculos depois, ainda se manifesta como verdadeira. E a imprensa da época foi pródiga ao aderir a este estereótipo, através das charges, às sátiras que ironizavam as reinvindicações femininas e a explicá-las, em palavras, para quem sabia ler.[5]


Imagem 2 A Emancipação da Mulher
(Bico de pena de Bordallo Pinheiro)
Fonte: Periódico O Diabo a Quatro, de 23 de março de 1879.



De mulher para mulher      


[...] escrever num contexto como esse também foi uma tarefa árdua [para as mulheres], uma vez que deveriam para isso quebrar padrões socialmente estabelecidos para o sexo feminino. Entretanto, nota-se, nessa mesma época, a atuação de mulheres no campo das letras [...] mostrando que, ao usar a sua escrita com o objetivo de conquistas, essas mesmas mulheres tiveram que enfrentar uma sociedade que não via com bons olhos o envolvimento delas nas ações em torno da política ou algo do gênero (PRIAMO, GONÇALVES E NOGUEIRA, 2008, p.183).


Em meados do século XIX, quando se tem os primeiros registros do tema[7], seja de forma literária, seja jornalisticamente, as pouquíssimas mulheres a dirigir-se às demais mulheres pela imprensa usavam argumentos do sexo oposto, de submissão social, de controle da família e do lar e de obediência ao marido, como chefe e senhor da família ou usavam, como no trecho a seguir, matéria irônica sobre a emancipação feminina. Esta matéria, transcrita de uma revista também dirigida às mulheres, apresenta ironicamente a independência de que a mulher burguesa desejava, a de escolher o próprio vestuário, ainda que atendida a saúde, a conveniência, a comodidade, o anseio e a elegância, como era de “bom costume”:

Há pouco temo celebrou-se em Nova-York uma reunião singularíssima composta exclusivamente de indivíduos do sexo feminino [...] Depois do discurso da presidente explicando o fim daquella reunião, lerão-se e approvárão-se as seguintes resoluções:
Considerando que a maneira actual de vestir as mulheres é contraria ao que demanda a saúde, a conveniência, a comodidade, o anseio e a elegância; Considerando que a maneira actual de vestir é de origem estrangeira e oferece graves inconvenientes a nossas compatriotas com obrigações indignas de uma sociedade livre.
Esta assembleia resolve:
Que se recomende e adopte um traje que nos ponha a coberto do incommodo e opressão do que atualmente vestimos [...] (Novo Correio de Modas[8], 1852, p.13, artigo Assembléa Revolucionaria Americana-Feminil)[9]


As revistas de “senhoras” no século XIX, foram, dentre outras, O Domingo (publicada no Rio de Janeiro, em 1874), por Violante Ataliba de Bivar e Velasco; Belo Sexo (publicada no Rio de Janeiro, em 1862), dirigida por mulheres, que não se escondiam no anonimato assinando suas matérias, e escreviam sobre literatura; Eco das Damas (publicada no Rio de Janeiro, em 1879), propriedade de Amélia Carolina da Silva Couto. Em outros lugares, fora da Corte, havia também revistas femininas, dentre elas: em Minas Gerais, em 1873, Senhorinha Motta Dinis dirigiu o periódico O Sexo Feminino; em Recife, em 1831, Dulcília Buitoni publicou o Espelho das Brasileiras (MARTINS, 2008, p.373)
O primeiro número de A Faceira, de 1911, uma publicação do início do século XX, mostra a preocupação de “falar pela mulher” de uma revista que circulava em caro papel couché, de  "propriedade de uma associação" e que trazia, no expediente de cada fascículo editado, a seguinte relação de colaboradores: as "senhoritas": Leonor Posada, Cecília Pimentel Aguirre, Violeta Motta, Hermance de Aguiar, Julieta Accioli, Elda de Moraes Cardoso e Carmen das Dores; os "senhores": Angelo Tavares, Ataliba Reis, Alvarenga da Fonseca, Hermes Fontes, Silveira da Motta, Da Veiga Cabral, Ricardo de Albuquerque, Deoclydes de Carvalho e Lupercio Garcia.
A Faceira tinha instalada sua redação no primeiro andar da rua dos Ourives número 50, logradouro que começava, então, na Igreja de Nossa Senhora do Parto e ia até o morro da Conceição, lá pelo Caminho do Parto para Conceição, denominação que desde o oitocentos ostentava.   Os cargos de redator-chefe d’A Faceira eram de Xavier Pinheiro, José Carvalhaes Pinheiro e Romulo Batista exercendo, respectivamente as funções de diretor e redator secretário. Era uma publicação mensal "com a pretensão de passar a quinzenal" (1911, nº 1, p.1), dirigida por homens, com a colaboração de algumas mulheres. Era vendida ao preço de 1$500, o seu número avulso, e sua assinatura custava, por 12 meses, 15$000. Não era uma revista barata, ainda que com boa circulação, para as leitoras, as senhoras citadinas da elite.
Em seu primeiro editorial, esta revista feminina fez sua apresentação ao público enfatizando o que, pelos “bons costumes”, deveria interessar a mulher urbana:

Ei-nos diante de uma difficil tarefa: escrever o artigo de apresentação e dizer o nosso programma. Apresentarmo-nos? Mas como?... De que modo nos cumpre falarmos ao mundo feminino, de cujos interesses nos propomos tratar, nesta revista que se dedica à vida elegante, à vida chic da nossa urbs? […] Rebuscando phrases, burilando periodos, procurando idéias, numa lucta sem treguas, conseguimos por fim encontrar quatro palavras que synthetisam o nosso programma. Eil-as: - um culto a mulher! São esses os nossos fins, os nossos escopos, o nosso rumo. (Editorial A Faceira, nº 1, 1911, escrito pelo redator-chefe não nomeado)

As revistas femininas[10] do século XIX e início do XX induziam as leitoras a tê-las como amigas e confidentes, o que fica visível pela correspondência que as revistas recebiam, que até enviavam ao endereço da leitora respostas particulares, como no caso da Revista Feminina, publicada de 1914 a 1936 (LIMA, 2007, p. 233), ou noticiavam as respostas das questões encaminhadas pelas leitoras em espaços pré-determinados do periódico. Existiam matérias sobre culinária, moda, literatura, orientações para esposas e mães. Enfim, através de gravuras, e depois fotos, à medida que as gráficas se modernizavam, as mulheres urbanas tinham suas próprias revistas que apresentavam, e buscavam resolver, suas necessidades dentro do lar. Essas revistas, poucas escritas por mulheres, coexistiam com revistas escritas por homens, para as mulheres. Nestas últimas, contraditoriamente, veiculavam-se informações sobre o sufragismo[11] e protestos contra os crimes que atingiam as mulheres (LIMA, 2007, p. 234).
Mas, mesmo adotando os mesmos argumentos que caracterizavam o poder de um gênero sobre outro, nota-se que a mulher, especialmente a de uma burguesia que aparecia com o capitalismo, começava a questionar sua condição. Inicialmente pela visão do próprio corpo, que ainda estava vinculado à higiene e a estética. Depois, pelo acesso à educação, que não se desejava fosse apenas para “adornar a sala” durante as visitas ou saraus que comumente se fazia.
Dois discursos feministas aparecem então: o discurso elitista, da mulher burguesa, que aqui representamos nos periódicos femininos através de matérias que enfatizam o cuidado com a aparência, de seu papel enquanto mãe e mulher e outro, da preocupação com a ascensão social, em outro discurso, diferenciado, sem acesso a uma revista própria, e que encontrava apenas pequenos espaços em periódicos masculinos. Era o espaço da mulher trabalhadora, anarcosindicalista do final do oitocentos e início do século XX. São preocupações diferentes, que, ao longo do tempo, vão convergindo, e onde a educação passa a assumir relevante papel na diferenciação do gênero feminino.
            Levando em conta as ideias europeias que vieram junto com o aumento do fluxo migratório na cidade do Rio de Janeiro, o trabalho, especialmente o fabril, passa a compor as necessidades das mulheres, expressas pelas anarquistas, socialistas e sindicalistas, lastreadas pela vida que levavam nos seus países de origem. Com o trabalho[12] entrando na pauta reivindicatória, as prerrogativas na luta pelos direitos concedidos ao sexo masculino tomam vulto e com elas a educação, que se fazia necessária a mulher, para participar efetivamente da vida social e de trabalho, em igualdade de condições.

Instruindo-vos, podereis instruir os vossos filhos e impedir que sejam depois vítimas como vós do injusto sistema social em que vivemos. Compreendereis que a pátria é uma ilusão; que vossos filhos nenhum dever têm a cumprir para com ela: [..] (MAGRASSI, Matilde. Proletárias, instrui-vos,17.01.1904)


            As anarcosindicalistas não tinham um espaço próprio para divulgação de suas ideias. Compartilham o mesmo periódico dos homens, assinando seus artigos ou comentários. Edgard Rodrigues (1997) cita Maria de Oliveira, em 1903, como uma das dirigentes da revista anarquista O Trabalhador, com sede à Rua  do Cotovelo, 17-B.[13]
Com o capitalismo e o incremento da imigração, especialmente na cidade do Rio de Janeiro, capital da República, cresceu o número de vagas para mulheres nas indústrias insipientes e nas manufaturas que se modernizavam, especialmente na indústria têxtil.
Surgiram, com a Reforma Rivádavia Corrêa, os primeiros cursos que profissionalizam mulheres. Enquanto toda esta transformação ocorria, também as greves se multiplicavam, arregimentando mulheres e provocando embates pela imprensa, de um lado e outro, opondo gêneros e dividindo opiniões, mas, ao mesmo tempo, dando maior visibilidade às reivindicações femininas através da imprensa, nos jornais, de tal sorte que, não só revistas femininas abriram espaço ao discurso feminino. O discurso das mulheres, inicialmente dividido pela pauta de reivindicações das camadas sociais, se aproximou, por colocar a educação como imprescindível para os gêneros, indistintamente. Importante assinalar que, também os jornais editados por homens, especialmente na classe mais pobre, contribuíram dando espaço para escritas femininas, ainda que um espaço pequeno e não consecutivo, às mulheres proletárias que desejavam manifestar-se.

Conclusão

            As revistas femininas cumpriram um relevante papel no movimento de emancipação feminino: levar a um maior número de mulheres suas necessidades na representação do papel da mulher existente, proporcionando que começassem a pensar e a andar fora do espaço físico do próprio lar. Nem sempre as revistas para a mulher, conquistando-as através da cumplicidade ao conhecer e tentar resolver seus problemas e sugerir soluções, eram escritas por mulheres.
            Tais periódicos tinham por objetivo circular a revista, aumentando a quantidade de exemplares, em nicho ainda pouquíssimo explorado: o das mulheres. Até porque a grande maioria das mulheres não sabia ler. Não podemos esquecer que a maioria destas revistas existe a partir mulheres que desejavam ampliar seus conhecimentos e resolver problemas da casa, mas existe, também, através de iniciativas femininas de mulheres que, por saberem ler, ampliavam o espaço da casa e faziam questão de opinar, como Nísia Floresta. Ela não foi a única. Antes e depois dela outras mulheres, em iniciativas individuais, foram criando um nicho comercial que, a princípio, foi percebido e ocupado pelo homem que escrevia por mulheres e para mulheres.
            
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[1] Doutoranda em Educação da linha de pesquisa História, Instituições e Práticas Educativas do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
[2] Os/as historiadores/as precisam [...] examinar as formas pelas quais as identidades generificadas são substantivamente construídas e relacionar seus achados com toda uma série de atividades, de organizações e representações sociais historicamente específicas. Não é de se estranhar que as melhores tentativas neste domínio tenham sido, até o presente, as biografias [...] (SCOTT, 1995, p.88)
[3] Estou me referindo, especificamente, aos novos campos de estudos da História que incorporaram novos objetos e, por consequência, constituíram “ novos territórios do historiador” (CHARTIER, 2002, p. 14).
[4] Considero feministas ações coletivas, por instituição ou grupo, que representassem o gênero feminino e, femininas, as ações individuais, tomadas por mulheres de vanguarda, do oitocentos ao  novecentos, recorte deste artigo.
[5]  É parâmetro para as reflexões que faço o discurso da imprensa, tal como o entende Ferreira (2010, p.2) “como espaço sócio histórico em que se articulam o poder e as transformações sociais, partícipe ativo da construção das identidades culturais e da memória social .”
[6] (À esquerda) E este... coitadinho deixando-os em paz para engordar o peru da madame. Não se parece morto com o Escarmentado de Voltaire? (À direita) Esta é a mulher do boudoir, a mulher das ruas que passa pelo templo, a mulher dos comícios e das academias, a sabichona, a preciosa ridícula, a mulher emancipada. Às vezes, em solteira, mademoiselle Giraud, depois de casada Madame Bovary e quando viúva, Helene d’une page d’amour. Synthese: a macaca no paiz de Nod. (obedecida a grafia original do periódico)
[7] Segundo Lima (2007, p.222)  Dulcília Buitoni, em seu livro Mulher de Papel, uma das precursoras da pesquisa deste tema, fez referências aos primeiros prováveis periódicos femininos  como sendo O Espelho Diamantino, de 1827 e Correio das Modas, de 1839.
[8] Esta revista foi publicada pelos irmãos Laèmmert, de 1852 a 1854. Tinha inúmeros colaboradores homens. Voltado ao público feminino, o jornal buscava tanto a edificação moral de suas leitoras, quanto seu entretenimento. Em nota publicada no Diário do Rio de Janeiro, de 18 de dezembro de 1838, para anúncio desta publicação, o texto publicitário era: “ jornal litterario e critico de modas, bailes, theatros, etc., contendo artigos sobre as modas, novellas escolhidas originaes e traduzidas, poesias, anedoctas, charadas, etc. Cada n. impresso em bom papel será ornado de uma magnífica estampa colorida. Preço da assignatura por 4 mezes $5Uooo”. (p.1) De modo geral além de moda, publicava folhetins de outros países, de modo geral omitindo o nome de colaboradores, mas nomeando autores estrangeiros.
[9] Adotada a grafia original do documento.  
[10] No início do século XX, pelas modernas instalações gráficas que aqui chegaram,  houve maior tiragem de periódicos. Até aqueles que não se diziam feministas, ou tinham pretensão de sê-lo, exibiam seções dedicadas às mulheres como Fon-Fon (Rio de Janeiro, 1907), Cigarra (São Paulo, 1914) e Revista da Semana (Rio de Janeiro, 1901). Ver MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista. São Paulo; Ed. Da Universidade de São Paulo/FAPESP, 2008.
[11] O sufragismo não era uma relevante questão no Brasil, pois devido ao voto censitário primeiro (só podiam votar, e ser votados, nobres, burocratas, militares, comerciantes ricos, senhores de engenho e homens de posses, mesmo analfabetos) e o voto de cabresto (em 1904, a Lei Rosa e Silva estabeleceu que, além do voto inserido na urna, outro seria preenchido, datado e rubricado pelo fiscal eleitoral, o que gerava intimidação ao eleitor -homem­- para escolher seu candidato e facilitava o “voto de cabresto” onde o “coronel” determinava em quem votar), o que impossibilitava, até ao homem, o direito do voto. Ver LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo: Companhia das Letras, 2012; NICOLAU, Jairo Marconi. História do voto no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 2004.
[12] Havia preponderância da mão-de-obra feminina e infantil  nas fábricas de tecido, como as estatísticas sobre o trabalho retratam  nos primeiros anos do século XX. São trabalhos conhecidos sobre o tema, dentre outros, os estudos de  Rago (1985, 1997), Perrot (1988), Hobsbawm (1979), Nogueira (2004).
[13] Com Maria de Oliveira dirigiram o periódico Motta Assunção, Guarani e Elísio de Carvalho. Edgard Rodrigues (1997) afirma que esta revista surgiu da influência do periódico A Greve, criado no mesmo ano de 1903, por Elísio de Carvalho.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

A alma encantadora das ruas, João do Rio


Texto de João do Rio, ou João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, escritor, boêmio, homossexual, intelectual, cronista do submundo da cidade do Rio de Janeiro. Este personagem me encanta. As palavras, as trata como faz com a vida, com languidez, como um passante despreocupado, um flaneur que as colhe em cachos e as serve, aos seus leitores, como iguarias finas que reproduzem, como um quadro, as pinceladas do artista. Pelo meu recorte de pesquisa, final do oitocentos e início do novecentos, sempre uso seu olhar para me descrever o Rio de Janeiro. Hoje, quinta-feira, vou deixá-los com ele, com meu mestre cronista, filho de Alfredo Coelho Barreto, professor de Matemática da Escola Normal e de D. Florência dos Santos Barreto. Nasceu na Rua do Hospício, mas de louco nada tinha, assim como a rua.


“A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa do seu calçamento. Cada casa que se ergue é feita do esforço exaustivo de muitos seres, e haveis de ter visto pedreiros e canteiros, ao erguer as pedras para as frontarias, cantarem, cobertos de suor, uma melopéia tão triste que pelo ar parece um arquejante soluço. A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas. A rua criou todas as blagues todos os lugares-comuns. Foi ela que fez a majestade dos rifões, dos brocardos, dos anexins, e foi também ela que batizou o imortal Calino. Sem o consentimento da rua não passam os sábios, e os charlatães, que a lisonjeiam lhe resumem a banalidade, são da primeira ocasião desfeitos e soprados como bolas de sabão. A rua é a eterna imagem da ingenuidade. Comete crimes, desvaria à noite, treme com a febre dos delírios, para
ela como para as crianças a aurora é sempre formosa, para ela não há o despertar triste, quando o sol desponta e ela abre os olhos esquecida das próprias ações, é, no encanto da vida renovada, no chilrear do passaredo, no embalo nostálgico dos pregões — tão modesta, tão lavada, tão risonha, que parece papaguear com o céu e com os anjos...
A rua faz as celebridades e as revoltas, a rua criou um tipo universal, tipo que vive em cada aspecto urbano, em cada detalhe, em cada praça, tipo diabólico que tem dos gnomos e dos silfos das florestas, tipo proteiforme, feito de risos e de lágrimas, de patifarias e de crimes irresponsáveis, de abandono e de inédita filosofia, tipo esquisito e ambíguo com saltos de felino e risos de navalha, o prodígio de uma criança mais sabida e cética que os velhos de setenta invernos, mas cuja ingenuidade é perpétua, voz que dá o apelido fatal aos potentados e nunca teve preocupações, criatura que pede como se fosse natural pedir, aclama sem interesse, e pode rir, francamente, depois de ter conhecido todos os males da cidade, poeira d’ouro que se faz lama e torna a ser poeira — a rua criou o garoto!
Essas qualidades nós as conhecemos vagamente. Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flaneur e praticar o mais interessante dos esportes — a arte de flanar. É fatigante o exercício?
 O flâneur é ingênuo quase sempre. Pára diante dos rolos, é o eterno “convidado do sereno” de todos os bailes, quer saber a história dos boleiros, admira-se simplesmente, e conhecendo cada rua, cada beco, cada viela, sabendo-lhe um pedaço da história, como se sabe a história dos amigos (quase sempre mal), acaba com a vaga idéia de que todo o espetáculo da cidade foi feito especialmente para seu gozo próprio. O balão que sobe ao meio-dia no Castelo, sobe para seu prazer; as bandas de música tocam nas praças para alegrá-lo; se num beco perdido há uma serenata com violões chorosos, a serenata e os violões estão ali para diverti-lo. E de tanto ver que os outros quase não podem entrever, o flâneur reflete.
As observaçõs foram guardadas na placa sensível do cérebro; as frases, os ditos, as cenas vibram-lhe no cortical. Quando o flâneur deduz, ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para seu uso exclusivo, ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas. E é então que haveis de pasmar da futilidade do mundo e da inconcebível futilidade dos pedestres da poesia de observação...
Eu fui um pouco esse tipo complexo, e, talvez por isso, cada rua é para mim um ser vivo e imóvel. Balzac dizia que as ruas de Paris nos dão impressões humanas.São assim as ruas de todas as cidades, com vida e destinos iguais aos do homem.[...]
Oh! sim, as ruas têm alma! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, spleenéticas, snobs, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes, que ficam sem pinga de sangue...
Vede a Rua do Ouvidor. É a fanfarronada em pessoa, exagerando, mentindo, tomando parte em tudo, mas desertando, correndo os taipais das montras1 à mais leve sombra de perigo. Esse beco inferno de pose, de vaidade, de inveja, tem a especialidade da bravata. E fatalmente oposicionista, criou o boato, o “diz-se...“ aterrador e o “fecha-fecha” prudente. Começou por chamar-se Desvio do Mar. Por ela continua a passar para todos os desvios muita gente boa. No tempo em que os seus melhores prédios se alugavam modestamente por dez mil réis, era a Rua do Gadelha. Podia ser ainda hoje a Rua dos Gadelhas, atendendo ao número prodigioso de poetas nefelibatas que a infestam de cabelos e de versos. Um dia resolveu chamar-se do Ouvidor sem que o senado da câmara fosse ouvido. Chamou-se como calunia, e elogia, como insulta e aplaude, porque era preciso denominar o lugar em que todos falam de lugar do que ouve; e parece que cada nome usado foi como a antecipação moral de um dos aspectos atuais dessa irresponsável artéria da futilidade.
A Rua da Misericórdia, ao contrário, com as suas hospedarias lôbregas, a miséria, a desgraça das casas velhas e a cair, os corredores bafientos, é perpetuamente lamentável. Foi a primeira rua do Rio. Dela partimos todos nós, nela passaram os vice-reis malandros, os gananciosos, os escravos nus, os senhores em redes; nela vicejou a imundície, nela desabotoou a flor da influência jesuítica. Índios batidos, negros presos a ferros, domínio ignorante e bestial, o primeiro balbucio da cidade foi um grito de misericórdia, foi um estertor, um ai! Tremendo atirado aos céus. Dela brotou a cidade no antigo esplendor do Largo do Paço, dela decorreram, como de um corpo que sangra, os becos humildes e os coalhos de sangue, que são as praças, ribeirinhas do mar. Mas, soluço de espancado, primeiro esforço de uma porção de infelizes, ela continuou pelos séculos afora sempre lamentável, e tão augustiosa e franca e verdadeira na sua dor que os patriotas lisonjeiros e os governos, ninguém, ninguém se lembrou nunca de lhe tirar das esquinas aquela muda prece, aquele grito de mendiga velha: — Misericórdia!
Há ruas que mudam de lugar, cortam morros, vão acabar em certos pontos que ninguém dantes imaginara — a Rua dos Ourives; há ruas que, pouco honestas no passado, acabaram tomando vergonha — a da Quitanda. Essa tinha mesmo a mania de mudar de nome. Chamou-se do Açougue Velho, do lnácio Castanheira, do Sucusarrará, do Tomé da Silva, que sei eu? Até mesmo Canto do Tabaqueiro. Acabou Quitanda do Marisco, mas, como certos indivíduos que organizam o nome conforme a posição que ocupam, cortou o marisco e ficou só Quitanda. Há ruas, guardas tradicionais da fidalguia, que deslizam como matronas conservadoras — a das Laranjeiras; há ruas lúgubres, por onde passais com um arrepio, sentindo o perigo da morte — o Largo do Moura por exemplo. Foi sempre assim. Lá existiu o Necrotério e antes do Necrotério lá
se erguia a Forca. Antes da autópsia, o enforcamento. O velho largo macabro, com a alma de Tropmann e de Jack, depois de matar, avaramente guardou anos e anos, para escalpelá-los, para chamá-los, para gozá-los, todos os corpos dos desgraçados que se suicidam ou morrem assassinados. Tresanda a crime, assusta. A Prainha também. Mesmo hoje, aberta, alargada com Vitrine. Prédios novos e a trepidação contínua do comércio, há de vos dar uma impressão de vago horror. À noite são mais densas as sombras, as luzes mais vermelhas, as figuras maiores. Por que terá essa rua um aspecto assim? Oh! Porque foi sempre má, porque foi sempre ali o Aljube, ali padeceram os negros dos três primeiros trapiches do sal, porque também ali a forca espalhou a morte!
Há entretanto outras ruas, que nascem íntimas, familiares, incapazes de dar um passo sem que todas as vizinhas não saibam. As ruas de Santa Teresa estão nestas condições. Um cavalheiro salta no Curvelo, vai a pé até o França, e quando volta já todas as ruas perguntam que deseja ele, se as suas tenções são puras e outras impertinências íntimas. Em geral, procura-se o mistério da montanha para esconder um passeio mais ou menos amoroso. As ruas de Santa Teresa, é descobrir o par e é deitar a rir proclamando aos quatro ventos o acontecimento.
Uma das ruas, mesmo, mais leviana e tagarela do que as outras, resolveu chamar-se logo Rua do Amor, e a Rua do Amor lá está na freguesia de S. José. Será exatamente um lugar escolhido pelo Amor, deus decadente? Talvez não. Há também na freguesia do Engenho Velho uma rua intitulada Feliz Lembrança e parece que não a teve, segundo a opinião respeitável da poesia anônima:

Na Rua Feliz Lembrança
Eu escapei por um triz
De ser mandado à tábua.
Ai! que lembrança infeliz
Tal nome pôr nesta rua!

 Há ruas que têm as blandícias de Goriot e de Shylock para vos emprestar a juro, para esconder quem pede e paga o explorador com ar humilde. Não vos lembrais da Rua do Sacramento, da rua dos penhores? Uma aragem fina e suave encantava sempre o ar. Defronte à igreja, casas velhas guardavam pessoas tradicionais. No Tesouro, por entre as grades de ferro, uma ou outra cara desocupada. E era ali que se empenhavam as jóias, que pobres entes angustiados iam levar os derradeiros valores com a alma estrangulada de soluços; era ali que refluíam todas as paixões e todas as tristezas, cujo lenitivo dependesse de dinheiro...
Há ruas oradoras, ruas de meeting — o Largo do Capim que assim foi sempre, o Largo de S. Francisco; ruas de calma alegria burguesa, que parecem sorrir com honestidade — a Rua de Haddock Lobo; ruas em que não se arrisca a gente sem volver os olhos para trás a ver se nos vêem —a Travessa da Barreira; ruas melancólicas, da tristeza dos poetas; ruas de prazer suspeito próximo do centro urbano e como que dele muito afastadas; ruas de paixão romântica, que pedem virgens loiras e luar.
Qual de vós já passou a noite em claro ouvindo o segredo de cada rua? Qual de vós já sentiu o mistério, o sono, o vício, as idéias de cada bairro?
A alma da rua só é inteiramente sensível a horas tardias. Há trechos em que a gente passa como se fosse empurrada, perseguida, corrida — são as ruas em que os passos reboam, repercutem, parecem crescer, clamam, ecoam e, em breve, são outros tantos passos ao nosso encalço. Outras que se envolvem no mistério logo que as sombras descem — o Largo de Paço.
Foi esse largo o primeiro esplendor da cidade. Por ali passaram, na pompa dos pálios e dos baldaquins d’ouro e púrpura, as procissões do Enterro, do Triunfo, do Senhor dos Passos; por ali, ao lado da Praia do Peixe, simples vegetação de palhoças, o comércio agitava as suas primeiras elegâncias e as suas ambições mais fortes. O largo, apesar das reformas, parece guardar a tradição de dormir cedo. À noite, nada o reanima, nada o levanta. Uma grande revolução morre no seu bojo como um suspiro; a luz leva a lutar com a treva; os próprios revérberos parece dormitarem, e as sombras que por ali deslizam são trapos da existência almejando o fim próximo, ladrões sem pousada, imigrantes esfaimados... Deixai esse largo, ide às ruelas da Misericórdia, trechos da cidade que lembram o Amsterdão sombrio de Rembrandt. Há homens em esteiras, dormindo na rua como se estivessem em casa. Não nos admiremos. Somos reflexos.
O Beco da Música ou o Beco da Fidalga reproduzem a alma das ruas de Nápoles, de Florença, das ruas de Portugal, das ruas da África, e até, se acreditarmos na fantasia de Heródoto, das ruas do antigo Egito. E por quê? Porque são ruas da proximidade do mar, ruas viajadas, com a visão de outros horizontes. Abri uma dessas pocilgas que são a parte do seu organismo. Haveis de ver chineses bêbados de ópio, marinheiros embrutecidos pelo álcool, feiticeiras ululando canções sinistras, toda a estranha vida dos portos de mar. E esses becos, essas betesgas têm a perfídia dos oceanos, a miséria das imigrações, e o vício, o grande vício do mar e das colônias...
Se as ruas são entes vivos, as ruas pensam, têm idéias, filosofia e religião. Há ruas inteiramente católicas, ruas protestantes, ruas livres-pensadoras e até ruas sem religião. Trafalgar Square, dizia o mestre humorista Jerome, não tem uma opinião teológica definitiva. O mesmo se pode dizer da Praça da Concórdia de Paris ou da Praça Tiradentes. Há criatura mais sem miolos que o Largo do Rocio? Devia ser respeitável e austero. Lá, Pedro I, trepado num belo cavalo e com um belo gesto, mostra aos povos a carta da independência, fingindo dar um grito que nunca deu. Pois bem: não há sujeito mais pândego e menos sério do que o velho ex- Largo do Rocio. Os seus sentimentos religiosos oscilam entre a depravação e a roleta.
Felizmente, outras redimem a sociedade de pedra e cal, pelo seu culto e o seu fervor. A Rua Benjamin Constant está neste caso, é entre nós um tremendo exemplo de confusão religiosa. Solene, grave, guarda três templos, e parece dizer com circunspecção e o ar compenetrado de certos senhores de todos nós conhecidos:
— Faço as obras do Coração de Jesus, creio em Deus, nas orações, nos bentinhos e só
não sou positivista porque é tarde para mudar de crença. Mas respeito muito e admiro Teixeira Mendes...
Nós, os homens nervosos, temos de quando em vez alucinações parciais da pele, dores fulgurantes, a sensação de um contacto que não existe, a certeza de que chamam por nós. As ruas têm os rolos, as casas mal assombradas, e há até ruas possessas, com o diabo no corpo. Em S. Luís do Maranhão há uma rua sonâmbula muito menos cacete que a ópera célebre do mesmo nome. Essa rua é a Rua de Santa Ana, a lady Macbeth da topografia. Deu-se lá um crime horrível. Às dez horas, a rua cai em estado sonambúlico e é só gritos, clamores: sangue! sangue!
Ruas assim ainda mostram o que pensam. Talvez as outras tenham maiores delírios, mas são como os homens normais — guardam dentro do cérebro todos os pensamentos extravagantes. Quem se atreveria a resumir o que num minuto pensa de mal, de inconfessável, o mais honesto cidadão? Entre as ruas existem também as falsas, as hipócritas, com a alma de Tartufo e de Iago. Por isso os grandes mágicos do interior da África Central, que dos sertões adustos levavam às cidades inglesas do litoral sacos d’ouro em pó e grandes macacos tremendos, têm uma cantiga estranha que vale por uma sentença breve de Catão:

O di ti a uê, chê
F’u, a uá ny
Odé, odá, bi ejô
Sa lo dê


Sentença que em eubá, o esperanto das hordas selvagens, quer dizer apenas isto: rua foi feita para ajuntamentos. Rua é como cobra. Tem veneno. Foge da rua!
Mas o importante, o grave, é ser a rua a causa fundamental da diversidade dos tipos urbanos. Não sei se lestes um curioso livro de E. Demolins, Comment la route crée le type social. É uma revolução no ensino da Geografia. “A causa primeira e decisiva da diversidade das raças, diz ele, é a estrada, o caminho que os homens seguirem. Foi a estrada que criou a raça e o tipo social. Os grandes caminhos do globo foram, de qualquer forma, os alambiques poderosos que transformaram os povos. Os caminhos das grandes estepes asiáticas, das tundras siberianas, das savanas da América ou das florestas africanas insensivelmente e fatalmente criaram o tipo tártaro-mongol, o lapão-esquimó, o pele-vermelha, o índio, o negro”.
A rua é a civilização da estrada. Onde morre o grande caminho começa a rua, e, por isso, ela está para a grande cidade como a estrada está para o mundo. Em embrião, é o princípio, a causa dos pequenos agrupamentos de uma raça idêntica. Daí, em muitos sítios da terra as aldeias terem o único nome de rua. Quando aumentam e crescem depois, ou pela devoção da maioria dos habitantes ou por uma impressão de local, acrescentam ao substantivo rua o complemento que das outras as deve diferençar. Em Portugal esse fato é comum. Há uma aldeia de 700 habitantes no Minho que se chama modestamente Rua de S. Jorge, uma outra no Douro que é a Rua da Lapela, e existem até uma Rua de Cima e uma Rua de Baixo. [...]”