Ilmo. Exmo. Sr. Dr. Chefe de Polícia.
Tratado sempre com a maior delicadeza por V. Excia., que se torna
distinto pelas suas maneiras atenciosas para com todos os que têm a honra de
conversar com V. Excia., deveria ir pessoalmente procurá-lo para pedir-lhe um
grande favor a bem da nossa sociedade; mas os contínuos afazeres, a que me
entrego diariamente, privam-me desse prazer, e por isso lancei mão do meio mais
fácil, e rápido, de comunicação, dirigindo-lhe esta carta, que, espero, será,
cuidadosamente lida por V. Excia., a quem não falta bom senso e moralidade para
decidir o que for mais compatível com os nossos usos, costumes e educação.
Há nesta cidade do Rio de Janeiro um estabelecimento, onde, todas as
noites, por entre baforadas de fumo e de álcool, se vê e se ouve aquilo que
nossos pais nunca viram nem ouviram, embora se diga que é um sinal de progresso
e de civilização. Chama-se esse estabelecimento — Alcazar Lírico.
Apesar de velho, não sou carranca e retrógrado, e sei aplaudir todas as
novidades que o estrangeiro nos traz, passando pela alfândega do bom senso, ou
mesmo por contrabando, contanto que tenha uma capa de moralidade; mas quando
essas novidades aparecem no mercado avariadas e cheias de água salgada, fico
indignado, pergunto aos meus botões em que país estamos, convenço-me de que
somos, na verdade, tidos por selvagens hotentotes, e imploro a Deus para que
ilumine as cabeças que nos dirigem, a fim de que apliquem o ferro em brasa, na
ferida, que começa a chagar-se pelo veneno que lhe inoculam.
Falo com esta franqueza, porque estou escrevendo a um magistrado
morigerado e honesto, cujo principal desejo é bem merecer de seus concidadãos
pelos seus atos de virtude e de rigorosa justiça. Enquanto se proibia a todos
os teatros de brasileiros — representações nas sextas-feiras da quaresma e na
véspera e no dia de Ramos, consentia-se que o Alcazar tivesse o salão aberto
para moralizar o bom povo, que o freqüenta! Se
não há injustiça neste procedimento, seja de quem for, há pelo menos
falta de equidade, que só redunda em proveito do francês, contra os
brasileiros, que vivem na maior miséria, esmolando da concorrência dos seus
teatros o pão quotidiano. V. Excia. dignar-se-á de explicar-me como se pode dar
esse fato?
Rogo ainda a V. Excia. o especial obséquio de freqüentar essa casa de
educação, não se contentando em mandar inspetores de quarteirão e mesmo o
respectivo subdelegado. V. Excia. é um homem ilustrado, que conhece
perfeitamente a língua francesa, e não só terá belas noites de divertimento, como
fará um
relevante serviço à sociedade em que vive, e onde tem milhares de
relações com todas as famílias decentes e honestas do Rio de Janeiro, as quais,
por uma infelicidade do empresário, nunca encontrará nessa Academia.
Desculpe V. Excia. a ousadia de escrever-lhe esta carta, e permita que,
d'ora em diante, lhe dirija muitas outras a respeito do meu protegido Mr.
Arnaud e do seu especial e inimitável estabelecimento.
Por agora, contento-me com os pedidos acima feitos, esperando que não
serão as minhas palavras atiradas ao vento.
Aqui me tem V. Excia. sempre pronto a cumprir as suas ordens como quem,
com todo o respeito e consideração, é
De V. Excia. amigo, afetuoso e obrigadíssimo criado
Dr. Semana.
(MACHADO DE ASSIS,1864 apud MENDES, IBA. Machado de
Assis Crônicas Completas, 2014, p.96-97)
Ao
ler essa crônica de Machado de Assis, originalmente publicada na Semana
Ilustrada, fiquei curiosa. Fui pesquisar na internet o que seria o
“estabelecimento” contra o qual, com sua fina ironia, desancara Machado em carta
pública ao Chefe de Polícia.
Descobri
inicialmente um site
sobre antigos teatros da cidade do Rio de Janeiro que dava o endereço (Rua da
Vala), data da inauguração (1959) e o nome do proprietário (Arnaud), além de muito boa
bibliografia para quem se interessasse pelo objeto. Mais pesquisas levara-me ao
projeto de pesquisa de pós-doutoramento, na PUC/SP, de minha ex-professora de
História Contemporânea na UERJ, Lená Medeiros de Menezes
“(Re)inventando a noite: o
Alcazar
Lyrique e a
cocote comédiénne no
Rio de Janeiro oitocentista”, publicada na
Revista
Rio de Janeiro, daquela universidade. Achei, também, artigo da mesma autora “Aimée, a
Cocotte Comedienne e o toque feminino
francês na noite carioca”, que complementa o artigo da
Rio de Janeiro, oferecendo mais informações sobre a estrela do
Alcazar, Louise Aimée.
O Alcazar
Lyrique teve os seguintes nomes entre 1866 e 1880: Théâtre Lyrique Français,
Theatro Francez, Alcazar Lyrico Fluminense e Alcazar Fluminense. Era uma
iniciativa privada, tendo sido idealizado pelo artista francês Joseph Arnaud,
proprietário e empresário que pretendeu dar à casa de espetáculos a feição dos
cabarés de Paris..
De acordo com
o Jornal do Commercio de 17/02/1859, o teatro foi inaugurado com o seguinte
repertório: "Ouverture; 1ère Partie: - Adieu, M. Lamoureux, chansonnette
par Mlle. Adèline; - Le cabinet de lecture, scène comique par M. Amédée; - Un
prince auvergnant, duo-comique par Mlle. Julie et M. Triollier; - La faurette
du canton, par Mme. Maire; Le chat de Mme. Chopin, scène comique par M. Germain;
Le vieux braconier, chansonnette par M. Amédée; - Air de Galathées, par Mme.
Maire. 2ème Partie: 1ère présentation de "La perle de la cannebière",
vaudeville en 1 acte de Marc Michel et Labiche. Distribution: Beautandon - MM. Amédée; Godefroid, son fils - MM.
Triollier; Antoine, domestique de Beautandon - MM. Germain; Georges, domestique
de Thérèson - MM. Alexis; Thérèson, macasse marseillaise - MMmes Céline Dulac,
Mme. de Ste. Poule, Mmmes. Adèline Morand; Mme. Blanche, sa fille - MM. Julie
Conjeon. O preço do ingresso de entrada foi, segundo o periódico, 1$.
Figuram depois
como proprietários do teatro, além de seu primeiro dono, D. Izabel (que deu nome ao estabelecimento, a partir de 1877), Antonio Gomes Neto e Lucinda Chabaud. Luis Ribeiro de Souza
aparece como proprietário noRequerimento 50-2-60 de 15/02/1879. Após o
falecimento de J. Arnaud, o teatro foi vendido pela viúva para o Capitão Luis
de Carvalho Rezende em 1880
.
Explica a professora
Lená que o Alcazar Lyrique era um teatro de variedades, nos moldes do teatro
criado por Offenbach
em
Paris, onde a plateia era uma
participante da apresentação. A estrela da casa era Louise Aimée, uma
cocotte comedienne,
que parecia encantar a tantos quantos a vissem e, chocar outros, como
Machado de Assis.
Em
seu artigo, Lená apresenta o
Alcazar Lyrique como uma expressão burguesa da
Paris de Napoleão III (período das reformas de Haussmann) e das Exposições
Internacionais: o moderno ininterrupto e a consolidação das Ciências e da
Indústria. As
cocotes eram, então, a
expressão dos tempos modernos que Paris irradiou pelo mundo e, no Rio de
Janeiro, que se urbanizava a céleres passos, situava-se na Rua da Vala
,
números 43, 45, 47, 49 e 51.
O
teatro Alcazar era polêmico, e o escritor Joaquim Manuel de Macedo o
considerava “satânico” porque era “o teatro dos trocadilhos obscenos, dos
cancãs e das exibições de mulheres seminuas”[que] que ”corrompeu os costumes e
atiçou a imoralidade”, [determinando] o “a decadência da arte dramática e a
depravação do gosto”. (MACEDO, 1988, p. 142 apud MENEZES, 2007, p. 77)
Gastão
Cruls, médico e editor, também crítico tenaz do estabelecimento, segundo texto dele próprio, que Lená nos apresenta (p.74),
denigre o estabelecimento com ásperas palavras:
[...] os velhos babosos, os maridos bilontras e a rapaziada bordelenga
se davam
rendez-vous todas as noites,
para rentear as atrizes brejeiras e as cupletistas gaiatas que degelavam os
mais idosos e rescaldavam os mais moços. (Cruls, 1965, p. 553)
E eu fiquei me perguntando se, sendo
um teatro tão polêmico, porque teve tantos nomes? Por que durou tanto? E, lendo
os textos de Lená verifiquei que faziam sucesso, porque esse teatro
transgressor era “a moda de Paris” nos trópicos. E quem não queria ser moderno
naquela época?
E a própria Lená acrescenta à minha
percepção sobre o porquê do sucesso, no texto sobre Aimée:
[...] as artistas do Alcazar tornaram-se símbolos emblemáticos de um
novo viver urbano, no qual as artistas do teatro de variedades tomavam os
palcos, invadiam as ruas e difundiam a moda para além dos limites de seu “meio
mundo”; estrelas incontestes de um novo gênero teatral: leve, divertido e
condizente com tempos nos quais trabalho e lazer travavam uma nova
dialética[...] (MENEZES, s/d, p.2)
O
teatro desaparece em 1877 devido à nova denominação. E, ao término desse
escrito sobre o Alcazar, deixe-me confessar-lhes: Gostaria de ter ido lá, visto
o vaudeville, e conhecido Aimée!