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sábado, 8 de março de 2014

Mulher, legado e memória



Augusta Bernardino da Silva Sá
Fonte: Acervo pessoal

            Hoje é comemorado o dia internacional da mulher. Podia lembrar aqui as mulheres dessa nossa cidade do Rio de Janeiro, desde que o movimento emancipacionista feminino começou, coletivamente, nas Ligas pelo Progresso Feminino ou até antes disso, pela ação individualizada de mulheres fortes, decididas e corajosas. Mas não é preciso. Cada um de nós tem, em sua própria família, uma mulher assim. Por isso decidi lembrar de uma mulher forte, uma das muitas que minha família tem. Uma mulher ‘guardiã” da memória familiar que me deixou, por legado, as histórias que o tempo não apagou. Foi assim que soube de Manuel dos Penachos, homem mau segundo constava, escravista na região de Campos, que tinha um cavalo com longo penacho, razão do apelido. Muitas vezes me foi contado, para que não esquecesse, talvez, que Manuel dos Penachos corria com seu cavalo a vigiar a produção de cana, o trabalho dos escravos, ou para atender a mulher a quem amava. Ouvi das histórias, muitas, que tio Neco, jornalista de “A Noite” lá pela década de 1920 início de 1930, descobria,  pelo que posso entender hoje era ele “jornalista investigativo”, e estampava nas páginas do tabloide. Algumas dessas histórias fui verificar, mania de historiador de confrontar a narrativa com o documento, e estava lá, sem nome do autor, nas páginas de “A Noite”. Mas esta mulher que ao passar pelo centro, que ela ainda chamava “cidade”, contava do Rio de Janeiro de seu tempo, da mulher de seu tempo, não sabia  que eu ouvia e registrava. Era intencional contar histórias a uma geração mais nova? Não sei e a essa pergunta não posso responder.
             Essa mulher era, e é, ainda, diferente. Trabalhava para ajudar o marido.  Não como a mulher de hoje, fora de casa. Em casa, distribuindo pensão, que ainda chegava às casas em marmitas redondas que se grupavam, uma de cada preto: feijão, arroz, salada... Essa mulher criou quatro filhas e um filho e, se bem me lembro, apesar do calmo e quase mudo, de tão calado marido, dominava a casa com o olhar. As filhas, todas, seguiram-lhe o exemplo de mulher forte. O filho puxou ao pai, não pela calmaria de voz ou mudez, ao contrário, mas precisava de uma mulher-pai, como o pai, mas não teve.
            Essa mulher a quem dedico este dia é minha avó, Augusta Bernardino da Silva Sá. Mulher nascida em 1880 que me contava de tudo, das festas na cidade pela mudança do século aos inúmeros vestidos que as mulheres levavam às festas no oitocentos para trocar em um quarto com mucamas; da Singer que a empregou para ser professora de bordados na novíssima máquina de costura do início do século, na cidade do Rio de Janeiro. A essa mulher forte, corajosa, batalhadora  que deixou nas filhas o legado da conquista e nesta neta, a memória a partilhar de uma época que não viveu.

            A todas as mulheres que desejaram, e apenas isso, serem visíveis numa sociedade que as invizibilizou, neste dia que é todo seu: a luta ainda não acabou!

sábado, 1 de março de 2014

Em tempos de aniversário e carnaval




            Hoje, 1º de março, minha cidade querida faz exatos 449 anos. Não é uma cidade velha se comparada a muitas outras, mas também não “nasceu ontem” como diz o bom malandro carioca[1].
            Para comemorar com a euforia comum ao carioca, só o carnaval, embaralhado na latinha de cerveja - indispensável à saudação do amigo, do dia de sol, do dia de chuva, do calor, sempre “insuportável” que o carioca suporta como ninguém – tomando de assento – ao lado da janela, claro – o aniversário da cidade.
            A alegria da cidade está aí, e sempre esteve. Desde os tempos de Estácio de Sá que não a toa deu seu nome ao berço do samba. Está aí desde os tempos da Tia Ciata, que com outras “tias” baianas recebia, com os terreiros cheios de comida, onde se misturavam tambores, música e felicidade. Está aí desde os tempos das lotações, pequenas, que se enchiam rápido e trafegam pelos bairros ligando a cidade. Está aí desde os tempo em que os bondes passeavam por rua estreitas a receber e despejar passageiros e ditando normas higiênicas de "não cuspir".
            Sempre houve alegria na cidade. Em seus piores momentos, lá estava o carioca a rir de si mesmo. Como no tempo onde se queria exterminar os ratos. Os meninos  caçavam ratos e... vendiam a bom preço. Salvava-se a refeição da família. Só no Rio!
            Ou quando a polícia, para ordenar e tornar civilizada a cidade, perseguia os capoeiras. Temíveis! Que nunca deixaram de existir, e de se exibir, e de criar “escolas” e de terem adeptos e... hoje representam a cultura do Brasil no exterior. Só no Rio!
            A alegria contaminava as greves na cidade, que apesar de reivindicações justas, levavam junto o modo de ser de quem nasceu aqui, ou escolheu este lugar para viver. Que cidade fez a primeira greve dos cocheiros, carroceiros e motorneiros de bonde[2]? Por que os cocheiros, carroceiros e motorneiros de bonde deflagraram a greve? Por que não queriam ser comparados aos “gatunos”, que só eles eram fotografados pela Polícia. Só no Rio!
            Mesmo estando consternados, como no tempo em que morreu o elegante Barão de Rio Branco, vimos motivo para haver mais um carnaval. E houve! Só no Rio!
            Até quando queríamos apostar tudo, nem tudo dava certo. Pois não era certo haver uma revolta contra as oligarquias em 1922? Estavam convictos, desfilando à beira mar... 17 militares e um civil... Os “Dezoito do Forte”! Porque um achou que o outro ia aderir e ficaram assim: só 18. Só no Rio!
            E a proclamação da República que não houve? Só podia acontecer aqui. Onde se pensaria convidar um militar, amigo do Imperador, para chefiar um regime que o deporia? Só no Rio.
            E você, ao ler todo esse texto, pense comigo: alguma cidade no mundo festejaria seu aniversário de 449 anos em data mais representativa de seu povo como o Carnaval? Só o Rio.



[1] O que chamo de malandro carioca é o habitante da cidade, tenha nascido, ou não, no Rio de Janeiro, que recebe o turista com fraternidade; que faz da vida uma piada pronta, onde ri de si mesmo; que anda pela cidade com desenvoltura assumindo o que   a cidade tem de bom e de ruim e, acorda feliz ao ver um dia de sol, que sabe que vai aplaudir de pé, "mais um dia", nas pedras do Arpoador; que é feliz “apesar de”.
[2] Em 1900. Ver TERRA, Paulo Cruz. Cidadania e trabalhadores: a greve dos cocheiros e carroceiros no Rio de Janeiro em 1900. In: Gladys Sabina Ribeiro (org.). Brasileiros e cidadãos: modernidade política 1822-1930. São Paulo: Alameda, 2008.