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terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Ano Bom: tradições no Rio de Janeiro na visão De Melo Morais






                Faltando poucas horas para a entrada  do “Ano Bom” de 2014 ainda fazemos uso, no Rio de Janeiro, de tradições. Para revivê-las, a escrita de Alexandre José de Melo Morais Filho, de 1901, com reedições em 1946, 1967 e a última em 2002, pelo Senado Federal. Diz Silvio Romero, seu prefaciador, que “tudo quanto é possível colher aqui no Rio entre as classes proletárias, ciganos, negros, velhas pedintes... Ele tem procurado entesourar”. E, não satisfeito, diz mais em seu prefácio laudatório:
… Pelo que toca especialmente ao autor desta bela obra, posso dizer que, por mais que tenha de ser acidentado o caminho do Brasil através dos tempos, quaisquer que tenham de ser as desilusões que os destinos históricos lhe reservem, a nossa raça há de sobreviver no futuro, e, lá bem longe, quando os sondadores do passado houverem de rastejar o fio de ouro de nossas tradições, quando houverem de estudar o povo, não no ruído das batalhas e nas chicanas da política, mas sim nas efusões da alma, nas energias do sentimento, os dois livros de Melo Morais Filho, onde seu coração palpita inteiro, suas poesias, que todas podem receber o nome único de Cantos do Equador, suas descrições de costumes, que todas podem ter o nome só de Festas e tradições populares do Brasil, hão de ser chamados a depor, como documentos autênticos; porque neles vive a grande alma deste país; porque intrepidez, que é o gênio lusitano transfigurado na América. Salve! poeta adorável, que desprezaste as lantejoulas da moda, para continuar a amar o sol de tua terra e enfeixar em tua palheta o brilho de seus raios! O teu amor te salvou!


                Desejando, um Feliz “Ano Bom”, o memorialista, etnógrafo, folclorista, Alexandre José de Melo Morais Filho...


***
                No Rio de Janeiro a folia toda começava de véspera. A cidade, mais animada exteriormente pelo con curso de famílias e de indivíduos ambulantes, revelava o júbilo público, que se os tentava sem reserva. Em qual quer praça, em qualquer rua, quem olhasse para as janelas, notaria fisionomias estranhas, caras novas, que pela maneira de apresentar-se, pela compostura, tornavam-se distintas de muitas que lá estavam, apreciando o mesmo objeto, entretidas pelo mesmo assunto.
                Nas intermináveis galerias de sacadas, janelas de peitoril e postigos, viam-se moças toucadas de flores naturais ao lado de algumas que não as tinham, homens vesti dos de brim branco conversando com amigos trajados como para as recepções íntimas, velhas folgazãs e gritadeiras falando para as vizinhas de defronte, crianças traquinas e arrenegadas trepando nas grades de ferro das sacadas, suspendendo dos espigões as maçanetas de chumbo das extremidades, que, às vezes, lhes escapando das mãos, machucavam-lhes os pés. E o que queria isso dizer?
                Eram as famílias que tinham chega do da roça para passar o Ano-Bom com os parentes, convidando-os para a véspera de S. João em seus sítios e fazendas... Aquelas cujas relações não iam além da cor te, reuniam-se igualmente, completando o aspecto pitoresco dessa cena, mais ou menos populosa, segundo os tempos em que esses costumes eram de rigor.
                Com antecedência, já os presentes de festas principiavam a chover, e a escravatura a fazer-se interessada nas felicidades de seus senhores. E as tradições consolidavam as bases da família, e o reinado das superstições iluminava-se da esperança. O dia de Ano-Bom era a época em que os membros de uma mesma família congregavam-se.  Vindo por vezes de grandes distâncias, passavam juntos, no meio do prazer e das felicitações, até depois de Reis.
                Para ver amanhecer o Ano-Novo, ninguém dormia antes da meia-noite, pois era da crença popular, que quem se conservasse com os olhos abertos até depois daquela hora, veria romper a aurora de anos seguintes. Então, concluídas as magníficas ceias, as cantorias ao Menino em seu presepe, no fim das pilhérias dos velhos matutos, de diálogos extravagantes, os inocentes namoros ferviam nas salas, ao diapasão do barulho dos pratos que se lavavam nas cozinhas, das rascadas das senhoras com as negras, do res sonar dos meninos es tirados nos sofás e nas cadeiras da sala da frente, à espera do sinal do Ano-Novo.
                Quando o relógio batia meia-noite, uma onda marulhosa de alegria espraiava-se pela assembleia, ao passo que as mucamas, os molecotes, as crias em fraldas de camisa, penduravam-se às sacadinhas da escada que deitava para o quintal, pasma das de nada descobrir, mas com os olhares fitos nas trevas que amortalhavam o ano velho.

– Boas saídas e melhores entradas! Diziam os pais aos filhos, as irmãs aos irmãos, os parentes e ami gos entre si, abraçando-se, beijando-se, saltando de con tentamento.

                Nas casas em que ha via bailes, o mesmo costume coroava a tradição, aos sons da música, ao brilho das serpentinas faiscantes, aos risos que corriam límpidos de uns lábios de rosa. Isso, porém, que prolongava a festa, mudava completamente no dia primeiro. Da manhã à tarde, as visitas faziam-se, desfilavam numerosos os portadores de presentes, sendo de preferência contemplados, nas freguesias, o vigário, os médicos e o fiscal.
                As bandas militares tocavam às portas e nos saguões das casas dos generais, dos ministros, das pessoas  gradas, dando as boas festas; compensando-lhes a atenção alguma cédula avultada ou peças de dinheiro em ouro.
                Enquanto nos armazéns de comestíveis o comércio encaixotava dúzias de garrafas de vinho, acondicionava queijos do reino, presuntos, caixas de figos e ameixas, diversos gêneros destinados aos fregueses do ano; enquanto do con vento da Ajuda, riquíssimas bandejas de prata, com a firma do indivíduo presenteado, arma das de doces, saíam umas após outras; era curioso de ver-se o que passava nas ruas, entretendo os abelhudos que comentavam dos sobrados.
                                                     
                Por toda a par te encontravam-se negros do ganho, de camisa de al go dão por fora da calça arregaçada, conduzindo em cestos um leitão de barriga para cima, amarrado de pés e mãos, com o focinho apertado com um barbante grosso, e guinchando, acercado de galinhas, patos e marrecos, com a cabeça pendente das beiradas do cesto e enfeitados  nas asas com lacinhos de fita. Para contrapeso, o ganhador não deixava de levar um galo ou um peru na mão livre, também enfeitado de fitas estreitas verdes e azuis. Ao presente era costume acompanhar um cartão de visita ou uma carta, concebi da mais ou menos nestes termos:

“...Boas saídas e melhores entradas lhe desejo. Incluso, encontrará vossa  mercê um leitãozinho, umas galinhas e um peru para mais um prato de seu jantar...”

                Aqui e além apareciam carregadores com caixões de vinho ou com caixas de açúcar, criados de libré precedendo escravos enviados com dádivas principescas, tais como colchas da Índia, aparelhos da China, baixelas de prata, cavalos de montaria, fazendo contraste com a crioula ou mulata de casa menos rica, que se guia com um pão-de-ló, um bolo-inglês, um pastelão numa salva modesta, coberta com uma gaze cor-de-rosa, com um tope de flores artificiais no centro, atravessado por um cartão ou um escrito.
                A isso não se limitavam os presentes. Pessoas ha via que ofertavam casas e palácios. O paço de S. Cristóvão foi um presente de Ano-Bom, feito pelo negociante Eli as Antônio Lopes a D. João VI, que o vendeu ao Estado, quando se retirou para Portugal.
                Considerava-se uma grande falta, um crime, a ausência dos parentes mais chega dos no jantar da família. Ninguém relevava essa falta, pois acreditava o povo que o que se fazia no primeiro do ano, se faria o ano inteiro. Daí se depreende que cada um queria estar neste dia com os seus, que todos vestiam roupa nova, que se brincava, tocava, cantava, a fim de que o conceito popular se realizasse em sua plenitude pressagiosa.
                Os escravos, que nunca foram estranhos às alegrias ou desgraças do nosso lar, ganhavam festas, tinham folga, divertiam- se  também.
                Por ocasião dos banquetes fidalgos ou dos jantares menos opulentos, ao calor dos brindes, ao alarido da canção:

Como canta o papagaio,
Como canta o periquito...

os convivas entusiasmados proferiam longos discursos, os rapazes recitavam colcheias, as moças tímidas e vergonhosas abaixavam os olhos às palavras “amor”, “meu bem”, refervendo a animação nas saúdes em honra aos mais velhos, à família re unida.
                As visitas oficiais e as de amizade faziam-se imprescindíveis. Havia cortejo no paço, os presepes pernoitavam iluminados, e – boas entra das – boas festas – eram moeda corrente de civilidade entre a população. (p.31-37)

Fonte: Moraes Filho, Melo (1843-1919). Festas e Tradições Populares do Brasil. Prefácio de Sílvio Romero. Desenhos de Flumen  Junius.  Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.


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