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sexta-feira, 2 de novembro de 2012

O ritual da morte no Rio de Janeiro : o enterramento



Amiga do tempo e irmã do sono, a Morte está imersa na vida.
(GOLDBERG e D’AMBROSIO, 1992, p. 11)

              Lidar com a morte não é, nem nunca foi, fácil para o homem, daí haverem sido estabelecidos rituais sociais, e também religiosos, para lidar com esta parte final da vida, interdita nos discursos, no cotidiano, nas sociedades. A interdição que a morte provoca vai buscar, no homem, seus medos recônditos do desconhecido, do “estar por vir”, ao mesmo tempo em que aflora o sentimento da perda sempre sem explicação plausível.
             O ritual que acompanhava a morte é seguido à risca para que o defunto tenha “uma boa morte”. Uma “boa morte”, no ritual fúnebre, era precedida pelo leito onde agonizava o corpo prestes a deixar a vida: Esther Pedreira de Mello, por exemplo, a personagem que investigo para minha tese de doutoramento, foi internada em uma Casa de Saúde tida pela sociedade como de alto prestígio[1], após uma operação para extirpar o “mal” que a afligia há tempos. A não divulgação da doença, poeticamente denominada “mal”, pertencia à norma da boa etiqueta de não nomear certas doenças. A aura romântica que envolvia a doença chamou, durante muito tempo, a tuberculose de “mal do século”, o câncer, era doença sequer nominada.  Na verdade, dentro do espetáculo do enterramento, esta é questão  insignificante para compreensão da vida, enquanto por si só, este detalhe revele representação social da causa mortis[2].
Normalmente se morre deitada, “jazendo no leito, enferma” (ARIÈS, 2003, p.34), cumprindo o ritual que permitia que, de “costas, mantenha os olhos para o céu” (ibid, p.31), sendo católica, provavelmente a cumprir o ritual de lamento da vida, depois o pedido de perdão dos pecados e a recomendação, a Deus, de seus sobreviventes, depois, o pensamento em Deus através da culpa e das preces.
Nenhum item deste ritual é privado, embora a morte seja solitária. O público, segundo este autor, é composto da família,  do sacerdote,  que possivelmente ofertou ao enfermo o último sacramento, dos amigos mais próximos e dos profissionais do hospital que ali estavam para determinar em que hora foi feita a passagem - a morte é um ritual de passagem - de uma para outra vida.
            O tema da morte é de difícil tratamento por envolver o “eu” mais profundo de cada ser, ou como explica Ariès (2003), depois de quinze anos pesquisando o tema, a atitude de

estar com a morte nas culturas cristãs ocidentais [...] que recuava quando acreditava tocar-lhe os limites [...] e era repelido cada vez para mais longe [...] em relação ao meu ponto de partida (p.14)

Goldberg e D’Ambrosio (1992) ao pesquisarem o tema da morte usam, muitas vezes, metáforas[1], ou mitos, como o de Gilgamesh [2], para lembrar que, embora desde a Antiguidade este seja um tema recorrente entre filósofos e pensadores, é um aspecto da vida para o qual não temos, enquanto seres humanos, como ter um conhecimento prévio sobre ela de modo a, cognoscitivamente, nos prepararmos para este evento.
            Rodrigues (1995), voltando-se para os rituais mortuários na cidade do Rio de Janeiro, explica-os como uma cena onde os personagens do “drama fúnebre se distribuem através do espaço e do papel que representaram”, numa “interação do teatro da vida com o teatro da morte”(p.14).
       A cidade do Rio de Janeiro foi [1], assolada pela peste bubônica, pela varíola, e outras doenças,  então, providências médico-profiláticas foram tomadas não só com a vacinação, mas com a mudança do costume do enterramento que era feito nas igrejas[2], a elas impregnando um odor fétido, corresponde à decomposição biológica dos corpos ali enterrados[3].
Os cemitérios da cidade foram criados de acordo com o Decreto Imperial nº 482, de 16 de outubro de 1851, e eram dois:  o São João Batista (cujo terreno foi comprado a Francisco da Cruz Maia e fazia parte da Chácara Berquó) e o Cemitério de São Francisco Xavier (originalmente  fronteiro à praia de São Cristóvão, desaparecida em razão de aterros diversos, onde era o antigo Campo da Misericórdia, usado desde 1839 para enterramentos de escravos; quando da transformação deste em cemitério público, foram comprados diversos terrenos do entorno do aterro).
            Essas novas medidas de enterramento, de cunho profilático, não só afetaram o convívio do habitante do Rio de Janeiro a partir desta grande epidemia, como marca uma nova era “civilizadora” e progressista na relação social. A medicina, por exemplo, responsável pelas explicações do enterramento nos cemitérios, fora das igrejas, passou a ter visibilidade e “a ser encarada como apoio científico indispensável ao exercício do poder do Estado”(RODRIGUES, 1995, p.56), deslocando-a da cura de doenças para a proteção à saúde.
            Faziam parte do ritual, ainda, o uso da mortalha, e havia de vários tipos, a contratação de carpideiras que "choravam o morto", a fotografia do defunto em seu caixão, ou sentado, especialmente se fossem crianças. Havia ainda a missa, onde o defunto estava presente, o que fazia parte das "preparações" para a "boa morte". O cortejo, que depois levava o defunto à nova morada, tinha sempre, e ainda tem, uma hierarquia, indo à frente a família, a seguir os parentes e por último amigos e representações da vida do homenageado. As coroas deviam especificar condolências e quem as mandara, o que ainda hoje se conserva.
A imprensa, que se expandia, devido às novas máquinas que chegavam, aos linotipos que se modernizavam e a empregados mais qualificados nas gráficas, levava aos quatro ventos as notícias, espalhando-as até a quem não era alfabetizado, o que constituía, então, grande parte da população. Estes muitos jornais que surgiram no final do oitocentos[4], de breve existência, permitiam-se opinar, ensinar e publicizar informes, e nem sempre eram confiáveis, porque aludiam ao “ouvir dizer”, mas democratizavam a notícia que o Estado desejava propagar, vão, aos poucos, sendo substituídos  por projetos gráficos que atraiam o olhar e  atingiam nichos específicos da população, como as mulheres, transmitindo-lhes, através de uma cumplicidade amiga, as representações culturais que ainda dominavam, e as que deveriam dominar, a sociedade.
Após a instauração da república, e com um projeto civilizatório para realizar aos moldes de Paris, as medidas normativas profiláticas permanecem, mas são revigoradas por outras, de embelezamento e alargamento de ruas e vielas, aterramento de mangues e derrubada de morros que higienizaram e modificaram a vida e a cultura urbana no Rio de Janeiro, inclusive sua relação com a morte.

Referências

ARIÈS, Philipe. História da Morte no Ocidente. Trad. Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.

BIBLIOTECA NACIONAL. Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro – 1924, vol I, p. 1297
                                                                                         
HORÁCIO. Carpe diem in Odes. Disponível em

GOLDBERG, Jacob Pinheiro e D’AMBROSIO, Oscar. A clave da Morte. São Paulo: Maltese, 1992

NAVA, Pedro - Balão Cativo/ memórias 2 - Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 2ª ed., 1974

REGO, Jose Pereira. História e descrição da febre amarela epidémica que grassou no Rio de Janeiro em 1850. Rio de Janeiro: Typ. Francisco de Paula Brito, 185

SANTOS, Antônio Alves Ferreira dos - A Archidiocese de S. Sebastião do Rio de Janeiro.  Rio de Janeiro: Typographia Leuzinger, 1914

CÂMARA, Cláudia Milena Coutinho da. Os agentes funerários e a morte: o cuidado presente diante da vida ausente. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Unversidade Federal do Rio Grande do Norte, 2011.


[1] Houve uma grande epidemia na cidade do Rio de Janeiro, em 1849, que modificou normas profiláticas e sociais até então utilizadas no Rio de Janeiro.
[2] O sepultamento fora das Igrejas só foi proibido a partir de 1850 devido ao grande surto de febre amarela de 1849, face a medidas profiláticas (RODRIGUES, 1995,p. 22). Segundo as estimativas de Pereira Rego (1851, p.II), em obra sobre a epidemia de 1850, dos 166.000 habitantes, a doença atingiu 90.658, causando 4.160 mortos.
[3] O sepultamento nas igrejas é prática medieval, Na Antiguidade os mortos eram sepultados fora dos limites das cidades, ao longo das estradas. (ARIÈS, 2003, p.37).
[4] “A partir de 1º de agosto de 1845, encontramos desafiando os poderosos O Socialista da Província do Rio de Janeiro, em Niterói. Saía a cada três dias. Sob a égide das ideias do francês Charles Fourier, tinha entre os fundadores e colaboradores o seu discípulo, Dr. Mure, médico homeopata, idealizador da Colônia do Saí, em Santa Catarina, no ano de 1841.”  Ver RODRIGUES, Edgar, Pequena história da Imprensa Social no Brasil. Florianópolis; Editora Insular, 1997 e SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro:Mauad, 1999.

[1] “Carpe diem quam minimum credula póstero/ Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi/ finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios/ temptaris numeros. ut melius, quidquid erit, pati./ seu pluris iemes seu tribuit Iuppiter ultimam,/ quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare / Tyrrhenum: sapias, vina/  liques et spatio brevi/ spem longam reseces. dum loquimur, fugerit invida/ aetas: carpe diem quam minimum credula postero.(HORÁCIO, Carpe diem, 1, 11.8)” Ver as Odes,Horácio (65  a.C- 8d. C).               
[2]  Épico de Gilgamesh é um antigo poema épico da Mesopotâmia, uma das primeiras obras conhecidas da literatura mundial. Acredita-se que sua origem esteja em  lendas e poemas sumérios sobre o mitológico herói Gilgamesh, que foram reunidos e compilados no século VII a.C. pelo rei Assurbanipal. A parte final do épico é centrada na reação de transtorno de Gilgamesh à morte de Enkidu, que acaba por tomar a forma de uma busca do herói pela imortalidade. Gilgamesh faz, então, uma longa e perigosa jornada para descobrir o segredo da vida eterna e vem a consultar Utnapishtim, o herói imortal do dilúvio. Depois de ouvir herói, o sábio  declaraque a  vida procurada por ele nunca será encontrada porque os deuses reservaram ao homem a morte, ainda que tenham mantido a vida  do homem na posse dos deuses. Ver Gilgamesh, trad. de Pedro Tamen. São Paulo: Ars Poetica, 1992 

[1] Em anúncio  propagandístico da instituição Casa de Saude Crissiuma, no Almanak : “de 1ª ordem, sob a direção do Dr. Crissiuma Filho” (1924, p.1297)
[2] Dependendo do status do morto a causa de sua morte pode, ou não ser publicizada

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